O desespero das mães em busca dos filhos. A vulnerabilidade de quem teve suas propriedades destruídas. A dor dos parentes dos 248 mortos identificados em Brumadinho e das 22 pessoas que continuam desaparecidas já serviu de cortina de fumaça para pelo menos 78 casos possíveis de tentativas de fraudes nos auxílios pagos pela mineradora Vale, no município da Grande BH, depois do rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão. De acordo com a Polícia Civil de Minas Gerais, esse é o número de casos investigados, sendo que 30 suspeitos chegaram a ser presos, 16 deles libertados sob fiança equivalente ao valor recebido indevidamente. Outros 48 casos são investigados por terem apresentado inconsistências com o registro de vítimas, locais de residência ou autenticidade de documentos.
A mineradora informou que 276 famílias de vítimas receberam doações no valor de R$ 100 mil. Do total, 101 residiam na zona de autossalvamento ; área na qual os próprios moradores precisam agir para escapar dos produtos liberados por um rompimento ; e receberam R$ 50 mil. A 91 produtores rurais e comerciantes com atividades produtivas nessa área foram pagos R$ 15 mil. Em toda essas modalidades indenizatórias há casos de fraudes ou tentativas.
Entre as histórias que mais impressionaram está a da candidata a deputada distrital em Brasília Ana Maria Vieira Santiago, de 57 anos, que disputou o cargo nas eleições de 2014 pelo MDB e se filiou posteriormente ao PR. Ela foi detida pela Polícia Civil em 18 de março depois de ter requisitado dois auxílios à Vale alegando ser detentora de uma propriedade em Brumadinho, no Bairro Parque da Cachoeira, destruído pelo rompimento. ;Isso se deu devido à facilidade que existia para ;provar; que a pessoa era do município. Muitos cidadãos de cidades vizinhas passaram a pedir declarações em postos de saúde para dizer que eram moradores. Ana Maria Vieira conseguiu uma indenização de R$ 50 mil por ter dito que tinha uma propriedade atingida. Não satisfeita, requisitou mais R$ 15 mil devido às atividades agrícolas que alegou ter perdido em decorrência do rompimento;, destaca a delegada titular de Brumadinho, Ana Maria Gontijo.
Outra coisa que chamou a atenção no caso da política foi o envolvimento de um dos filhos dela, que é natural de Anápolis (GO). ;Esse filho tinha de fazer comparecimentos regulares à Justiça devido a complicações legais. Numa dessas datas, ele compareceu à Justiça no Distrito Federal, mas depois alegou estar em Brumadinho. Queria, também, que a mineradora arcasse com uma cirurgia no ombro, já que ele disse ter se ferido fugindo da lama do rompimento;, conta a delegada Ana Paula Gontijo. A candidata chegou a convencer moradores de Brumadinho a servir de testemunha para que fosse aceita no cadastro de atingidos como habitante local e produtora rural do bairro devastado. Essas pessoas também responderão por falsidade ideológica.
O rompimento de barragens liberou mais de 12 milhões de metros cúbicos de lama e água na área de operação da Mina Córrego do Feijão, percorrendo 10 quilômetros em Brumadinho até chegar ao Rio Paraopeba, em 25 de janeiro. Desde então, as reparações vêm sendo discutidas na Justiça ou definidas em acordos.
Atualmente, segundo a titular da delegacia de Brumadinho, as fraudes mais comuns são sobre as indenizações emergenciais pagas pela Vale a pessoas que têm residência em Brumadinho ou num raio de um quilômetro do Rio Paraopeba de Brumadinho a Pompeu, na Região Centro-Oeste. Esse pagamento ocorrerá pelo prazo de 12 meses, com parcelas de um salário mínimo mensal para cada adulto, 50% desse valor para cada adolescente e 25% para cada criança. Moradores dos bairros Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira recebem ainda uma cesta básica por família. Mais de 100 mil pessoas já estão recebendo essa modalidade de indenização, segundo a Vale. ;Nesse caso, entraram muitas pessoas de cidades vizinhas com documentação falsa ou irregular. Com isso, a Vale abriu um canal para que as pessoas que se arrependeram devolvam os recursos, o que pode atenuar suas penas e elimina as prisões em flagrante;, afirma a delegada Ana Paula Gontijo.
Constrangimento para quem sofre
A questão das indenizações em Brumadinho sempre foi espinhosa para as pessoas que perderam seus familiares. Isso porque há situações em que esses atingidos diretamente pela tragédia passam por constrangimentos com os chamados atingidos indiretos e os irregulares. Segundo a delegada titular de Brumadinho, Ana Maria Gontijo, isso só amplia a dor e o sofrimento de quem teve sua vida destruída pela tragédia do rompimento. A delegada conta que tem reuniões semanais com os atingidos e que os relatos da maioria ainda são de muita mágoa.
;Essas pessoas sofrem diariamente pelas suas perdas, algumas nem sequer puderam enterrar seus mortos, vivendo um eterno velório de caixão vazio. Aí, ouvem um vizinho, uma pessoa que não tem direito, comemorando o dinheiro que ganhou da Vale. As pessoas relatam que há quem recebe o auxílio e diz abertamente que vai fazer churrasco ou beber por conta da Vale. Isso é tripudiar sobre a dor das pessoas;, considera a delegada. Na opinião dela, um número razoável de fraudadores ainda recebe os recursos, mas isso deve se reduzir de agora em diante.
As fraudes para o recebimento criminoso de indenizações e auxílios da mineradora Vale não ocorrem apenas em Brumadinho. Há relatos em todos os lugares onde a população precisou ser removida ou desalojada devido à insegurança que a crise no setor de segurança de barragens gerou.
Em Nova Lima, tem destaque o caso de dois homens que deram o mesmo endereço para fingir que moravam em zonas de autossalvamento do Bairro de São Sebastião das Águas Claras (Macacos). Samuel Batista dos Santos, de 25 anos, foi a segunda pessoa presa na Operação Chacal, da Polícia Civil de Nova Lima. Na verdadeira residência, uma surpresa: cerca de R$ 10 mil em artigos alimentícios e temperos de alto padrão, que a polícia afirma terem sido comprados com o auxílio irregular para serem vendidos posteriormente. Nesse caso, o suspeito fez uso do auxílio de vouchers para pessoas que foram obrigadas a morar em hotéis providenciados pela Vale e só podem comprar gêneros alimentícios no comércio local de Macaacos.
Identificação de vítimas
Uma ferramenta que pode ajudar a dar uma resposta mais rápida à identificação de fragmentos de corpos localizados na área do desastre de Brumadinho chegou ontem ao Instituto Médico-Legal (IML) e deve estar funcionando na semana que vem. O sequenciador de DNA Ilumina, fabricado nos Estados Unidos e que custou à Mineradora Vale R$ 1,5 milhão, poderá dar destino a 120 fragmentos de corpos para os quais já esgotaram as possibilidades de identificação por outros métodos. "É a derradeira tecnologia para identificar o material genético de uma amostra. Ao longo dos meses, o estado de degeneração das amostras se tornou um desafio. Há amostras que precisaram ter o DNA extraído mais de 15 vezes por esse motivo. O que o Ilumina não consegue, não há outra técnica possível", afirma o superintendente de polícia técnico-científica da Polícia Civil, Tales Bittencourt.