Há um mês, estudantes da Escola de Artes e Arquitetura da Universidade Católica de Goiás (UCG) apresentaram o projeto de um memorial, encomendado pela Associação de Moradores do Setor Aeroporto, com o intuito de erguer o prédio na área do Lote 30 da Rua 26-A, onde ficava o ferro-velho em que Wagner Pereira, então com 19 anos, e Roberto Alves, 22, abriram a cápsula com 19g de césio. No entanto, a ideia não tem prazo nem dinheiro para sair do papel e da maquete. Tampouco é a primeira vez que se fala em um prédio para contar a história do acidente (leia Memória).
À frente da Associação dos Contaminados, Irradiados e Expostos ao Césio 137, Sueli Lina de Moraes Silva, 61, diz que a falta de conservação da memória do acidente contribui para o esquecimento das vítimas. ;Temos de lembrar dos que se foram e dos que ficaram. Por isso, a construção de um memorial é importante. Mas prometeram muito e nada fizeram;, queixa-se.
Sueli lembra de cada momento que sucedeu à abertura da cápsula com o césio. Ela mora na mesma casa da época do acidente, na Rua-26, onde criou os três filhos, hoje com 37, 38 e 40 anos. Os fundos da residência dão para o terreno concretado onde ficava o ferro-velho. Sueli mantém um mapa, feito à mão, com os nomes de 23 vítimas de câncer residentes nos setores Aeroporto e Ferroviário, os mais atingidos pela radiação. Gente que não entrou para a lista oficial das vítimas do césio.
Apesar de o município de Goiânia e o estado de Goiás terem criado uma rede para atender os atingidos pelo acidente, Sueli diz que as pessoas reconhecidas oficialmente vivem em dificuldade. ;A assistência sempre foi falha, principalmente na distribuição de remédios. Sempre falta algum. As pensões também atrasam, além de estarem defasadas. Hoje, cada vítima recebe R$ 960, mas deveria receber R$ 998, sendo reajustado em janeiro, com o salário mínimo;, ressalta.
A luta de Siron Franco
O processo de silenciamento desestimula até quem batalha há décadas pela memória da tragédia do césio 137. O artista plástico goiano Siron Franco desenvolveu dois projetos para dar de presente à cidade, mas nada sai do papel. ;Não entendo um negócio desses. Goiânia tem se mostrado uma cidade complicada. Por que não posso criar coisas para Goiânia? No mundo inteiro, há memoriais que perpetuam a história dos episódios, até mesmo geram renda, mas aqui, não;, lamenta.Siron cresceu na Rua 74, diante da Rua 57 do Setor Central, onde foi rompido o lacre da cápsula com o material radioativo. Em 1987, ele morava em São Paulo quando soube da contaminação. À época, reuniu um grupo de artistas e jornalistas e seguiu para Goiânia para tentar mostrar ao país a dimensão do problema. Cinco anos depois, o governo de Goiás prometeu erguer um memorial na Rua 57 para homenagear as vítimas e valorizar a região. O projeto do artista plástico pretendia fazer o visitante entrar em uma cápsula gigante. Ali, um contador de radiação mostraria que não havia perigo no local.
Na prática, conseguiu-se que uma placa fosse colocada na Rua 57. E isso apenas em 2009. A tentativa de construção do Memorial das Vítimas do Césio 137 estava na pauta das ações da gestão de Marconi Perillo (2011-2018), mas nada saiu do papel em oito anos.
Outro projeto de Siron Franco é um painel sobre a tragédia. O trabalho conta com uma maquete construída e deveria ser erguida no Instituto de Assistência dos Servidores Públicos do Estado de Goiás (Ipasgo). É lá onde as vítimas da tragédia recebem atendimento médico e fazem consultas e exames, como garantido em lei. O trabalho prevê uma montagem com fotos da época, como se fosse uma grande radiografia. Será pintado, terá 11,80m por 15m, e ficará na sala principal. ;Por enquanto, infelizmente, não passamos da maquete;, afirma Siron.
Até o momento, nenhuma das duas iniciativas de Siron Franco aparecem na agenda do governo de Goiás.
19
Quantidade de gramas de césio 137 retirado de cápsula que estava dentro de um aparelho de raio-x abandonado
960
Valor em reais da pensão que cada vítima do césio recebe do governo ; o benefício deveria ter sido atualizado para R$ 998
Monitoramento
A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), responsável pela descontaminação do césio em Goiânia, monitora sete pontos na cidade, com medições regulares da radiação no solo e a na vegetação. A coleta de dados trimestrais resulta em relatórios anuais. O órgão garante que todos os pontos não oferecem nenhum risco, pois tem ;níveis seguros de radiação;. À época do acidente, a Cnen examinou 112,8 mil pessoas, mais de 10% da população de Goiânia. Eles identificaram 120 pessoas com contaminação no corpo por causa do contato com a fonte de césio.Memória
Promessas e desrespeito
2008A Secretaria da Saúde de Goiás anuncia a construção do Memorial do Césio e do Centro de Referência, em Goiânia, e pede ao Ministério da Saúde R$ 150 mil para fazer o resgate do acervo histórico. Já o Memorial do Césio deveria ser construído na Rua 57, com projeto do arquiteto Oscar Niemeyer. Porém, não há verba garantida. A construção de um moderno centro internacional de pesquisa e documentação em Goiás é mais ousada. Ele deveria seguir os moldes dos que existem em Hiroshima (Japão) e Chernobil (Ucrânia) e servir para pesquisas e prestar atendimento, com alto grau tecnológico.
2011
Criada em 1987, a Superintendência Leide das Neves Ferreira (Suleide) é renomeada para Fundação Leide das Neves (Funleide), em 1999. Em 2011, é desmembrada em duas unidades: Centro de Assistência aos Radioacidentados (Cara) e Centro de Excelência em Ensino, Pesquisa e Projetos Leide das Neves Ferreira (CEEPP-LNF).
2012
A Assembleia Legislativa de Goiás aprova proposta de construção de um memorial em Goiânia. Pelo projeto, será erguido ;um obelisco em forma quadrangular alongada e sutil, que se afunila ligeiramente em direção à sua parte mais alta, com altura não inferior a 50m, construído preferencialmente em pedra;. Pelo texto, o memorial tem o objetivo de ;lembrar o maior acidente radiológico em área urbana no mundo, informar a população sobre os efeitos da radiação no ser humano, refletir sobre as consequências decorrentes do uso indevido de substâncias radiológicas e radioativas e incentivar a pesquisa sobre os efeitos da radiação no corpo humano e as formas de tratamento;.
2016
Após receber uma visita do governador Marconi Perillo (PSDB) em seu ateliê, o artista plástico Siron Franco, expoente das artes goianas, anuncia que vai desenhar e confeccionar, com dinheiro do estado, o memorial das vítimas do césio, a ser inaugurado em 2017, quando o acidente completaria 30 anos.
Em dezembro do mesmo ano, é aprovada a Lei n; 9.962, que altera o nome da Rua 57 para Paulo Henrique de Andrade. Ele é fundador da ONG Círculo de Apoio à Aprendizagem Profissional de Goiânia, cuja sede fica na Rua 57 e não tem relação com o césio. A Rua 26-A, no Setor Aeroporto, passa a se chamar Rua Francisca da Costa Cunha D. Tita, também sem vínculo com a tragédia goiana.
2017
O artista plástico Siron Franco é escalado para montar um painel sobre a tragédia do césio no Ipasgo. O trabalho terá uma montagem com fotos da época, como se fosse uma grande radiografia. A maquete fica pronta para marcar os 30 anos do acidente radioativo.
2018
A Associação dos Moradores do Setor Aeroporto (Amsa) cobra a construção de um memorial. A entidade sugere a Rua 26-A para erguê-lo.
2019
Alunos da Universidade Católica de Goiás apresentam o projeto de um memorial, encomendado pela Amsa, sem verba ou prazo para construção.