Em manifestações à Procuradoria-Geral da República e ao Congresso, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão - braço do Ministério Público Federal - afirmou que o decreto sobre porte de armas do governo Jair Bolsonaro (PSL) é inconstitucional. Os procuradores Déborah Duprat e Marlon Alberto Weichert ressaltam que o "objetivo declarado da medida é cumprir com uma promessa de campanha política, pouco importando os princípios da legalidade e da separação de poderes, bem como o dever público de promover a segurança pública".
O documento enviado à PGR servirá de subsídio para que o órgão emita parecer sobre ação da Rede, que acionou ao Supremo alegando que o decreto do presidente é um "verdadeiro libera geral" e "põe em risco a segurança de toda a sociedade e a vida das pessoas".
O partido acusa de o Palácio do Planalto anunciar a medida sem haver "amparo científico", além de usurpar o poder de legislar do Congresso Nacional, "violando, desta forma, garantias básicas do Estado Democrático de Direito. A ação está sob relatoria da ministra Rosa Weber, que deu cinco dias para que o governo se manifeste.
"A permissão ampla de posse e porte de armas de fogo, além de inconstitucional, afronta as bases científicas que reiteradamente demonstram que a expansão do porte de armas, longe de reduzir a violência, é prejudicial à segurança pública", ressaltam.
A Procuradoria cita o Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O documento diz que em 2017 o Brasil alcançou a marca histórica de 63.895 homicídios. "Isso equivale a uma taxa de 30,8 mortes para cada 100 mil habitantes, ou seja, ao menos 30 vezes maior que os índices europeus".
"Segundo o Ipea (Atlas da Violência 2018), 71,1% dos homicídios no país são provocados por armas de fogo, índices próximos de países como El Salvador (76,9%) e Honduras (83,4%). Essa proporção permanece estável desde 2003, quando sancionado o Estatuto do Desarmamento", afirma a Procuradoria.
Os procuradores ainda dizem ser "importante ressaltar que os índices de homicídio por arma de fogo eram 40% do total de homicídios na década 1980 e cresceram ininterruptamente até 2003 - ano no qual foi sancionado o Estatuto - quando atingiram o patamar de 71,1%, ficando estável até 2016".
"O número de homicídios por arma de fogo passou de 6.104, em 1980, para 42.291, em 2014, crescimento de 592,8%4. Se não fosse o Estatuto do Desarmamento e a limitação da posse e porte de armas, estima-se que entre 2004 e 2013 teriam ocorrido mais 160 mil mortes violentas no país", sustentam.
Os procuradores ainda avaliam que a "expansão do arsenal de armas de fogo de origem lícita contribui para a utilização ilícita e criminosa dessas mesmas armas". "Estudo do Instituto Sou da Paz aponta que a redução no número de armas legais em circulação produz efeitos positivos na circulação de armas ilícitas, pois parcela relevante das armas ilícitas tem origem lícita".
"Tome-se, como exemplo, o Estado de São Paulo, onde apenas nos anos de 2014 a 2018 houve 11,5 mil casos de roubo ou furtos de armas de
fogo, sendo 53% em residências e comércios, locais nos quais supostamente estariam bem guardadas. Pesquisa do Ministério Público de São Paulo e do Instituto Sou da Paz revela, ainda, que 38% das armas com numeração raspada apreendidas na cidade de São Paulo, em casos de roubos e homicídios, tinham origem no mercado legal, ou seja, foram adquiridas por civis", sustentam.
Os procuradores afirmam ser "evidente que o aumento do quantitativo de armas de fogo em posse de civis é medida deletéria para o direito fundamental à segurança e, só por isso, incompatível com a Constituição".
Competência
De acordo com os procuradores, "a alteração no regime de posse e uso de armas de fogo pretendida pelo governo deveria ter sido submetida ao Congresso Nacional através de um projeto de lei, pois não se trata de matéria meramente regulamentar, mas sim de alteração de uma política pública legislada". "A modificação por meio de um decreto regulamentador do sentido central de uma lei é um ato do Poder Executivo que agride o princípio da separação dos poderes, consagrado no artigo 2º da Constituição Federal".
"O regime democrático de direito e o princípio da separação dos poderes (CF, art. 2º) exigem que o governo submeta ao Congresso Nacional, dentro das regras do devido processo legislativo, suas propostas de política pública, notadamente quando sua alteração dependa de alteração de política anteriormente adotada mediante lei. Um decreto que invade espaço reservado à lei é, por esse motivo, inconstitucional", sustentam.
Concessão
Os procuradores mostram que "na regulamentação anterior ao decreto impugnado e ao Decreto nº 9.685/2019, a declaração da "efetiva necessidade" da arma de fogo deveria "explicitar os fatos e circunstâncias justificadoras do pedido, que serão examinados pela Polícia Federal segundo as orientações a serem expedidas pelo Ministério da Justiça"".
"No exato espírito da Lei, o regulamento fixava que a Administração Pública tinha o dever de avaliar a existência, ou não, da efetiva necessidade. Essa avaliação envolvia o exercício da discricionariedade pela autoridade administrativa, no caso, o Delegado da Polícia Federal", narram.
Eles dizem que, no entanto, "o novo regulamento exclui a possibilidade de exercício da discricionariedade, pois determina que se presume a veracidade dos fatos e das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade". "Trata-se de um absurdo do ponto de vista lógico e legal. Primeiro, porque subverte a determinação legal de que cabe ao interessado demonstrar a sua necessidade específica".
"Segundo, porque é impossível para a administração comprovar documentalmente que o cidadão não tem razões para requerer autorização para a compra da arma de fogo. A referida presunção de veracidade invalida, assim, o conteúdo da norma legal, que impõe um dever de demonstração da necessidade efetiva em se possuir uma arma de fogo na residência ou local de trabalho", afirmam.
Os procuradores ainda dizem que o "comando normativo do decreto anula o poder de polícia da Polícia Federal de examinar os fundamentos da declaração". "A partir de agora, a administração não pode mais valorar as razões do interessado, pois, "presume-se a veracidade dos fatos e das circunstâncias por ele afirmadas" e, para recusá-las, teria que comprovar documentalmente que o conteúdo material subjetivo da declaração não é verdadeiro".
"Evidente que, com isso, a lei virou letra morta, pois não mais será necessário demonstrar uma "pessoal e efetiva necessidade". O decreto já a presume, quase absolutamente. A rigor, nem relativa é a presunção, pois a prova exigida para elidi-la é praticamente impossível de se produzir", argumentam.
Até 4 armas
Os procuradores ainda afirmam que, "apesar da redação um tanto confusa, o dispositivo autoriza que todo cidadão adquira até 4 armas, sem qualquer comprovação da efetiva necessidade". "Entretanto, é possível dispor de um arsenal ainda maior, desde que se alegue "a caracterização da efetiva necessidade se presentes outros fatos e circunstâncias que a justifique".
"Não fica claro se, nesse caso, será exigida alguma demonstração da real necessidade ou se também se aplica a presunção de veracidade absoluta. Em que pese a má qualidade da redação, que prejudica fortemente a compreensão da norma, é indiscutível que o Decreto autoriza a posse de inúmeras (ao menos 4) armas de fogo por uma mesma pessoa ou empresa, sem qualquer necessidade de demonstração da razão", afirmam.
Insegurança
Os procuradores lembram que, como "aponta o Instituto Sou da Paz, em nota publicada no dia 8 de maio de 2019, o artigo 2º, inciso I, do Decreto nº 9.785/1921 ampliou o conceito de arma de uso permitido, "autorizando que civis tenham acesso a armas que hoje são usadas pelas Forças Armadas e de segurança pública. Ex: pistolas 9mm, pistola .40, pistola .45, carabina semiautomática .40, espingarda semiautomática calibre 12".
A Procuradoria dos Direitos do Cidadão alerta que "em muitos Estados da federação, os civis terão acesso a armas de fogo com maior poder lesivo do que aquelas que as próprias forças públicas de segurança portam". "Quando se conjuga esse dado com aqueles apontados no item I dessa representação, percebe-se o enorme risco a que se está submetendo a sociedade brasileira e o direito fundamental à segurança, pois inevitavelmente parte desse enorme armamento terminará sendo apropriado por organizações criminosas e milícias urbanas ou rurais e então empregadas em atividades criminosas".
"É o próprio Estado facilitando o aumento de poder de fogo de infratores da lei vis a vis o aparato público de segurança", argumentam.
Porte
Os procuradores dizem que "o novo regulamento editado pelo Decreto nº 9.587/19, no seu afã de liberar o porte de armas ao máximo para a população, investiu como raras vezes visto contra uma lei de regência". Lembram que "foi instituída uma relação de mais de 20 profissões ou circunstâncias para as quais se presume a situação pessoal de risco ou de ameaça à integridade física".
"Tão somente esse dispositivo é de enorme impacto no direito à segurança e suficiente para demonstrar a manifesta ilegalidade do regulamento. Por ele, cerca de 19 milhões de pessoas poderão fazer jus ao porte de armas de fogo Isso apesar de a Lei ter como regra a proibição geral do porte", sustentam, a respeito dos dispositivos que preveem a possibilidade de concessão de porte.