A concessão de uma fábrica de remédios do governo paulista à iniciativa privada dobrou o custo dos medicamentos genéricos adquiridos pelo jornal O Estado de S. Paulo, criou uma dívida milionária com o laboratório contratado e colocou em xeque o modelo de Parceria Público-Privada (PPP) para gestão de indústrias farmacêuticas. Diante dos problemas, o governo João Doria (PSDB) não descarta rescindir o contrato, que é alvo de uma investigação do Ministério Público Estadual e de uma CPI recém-instalada na Assembleia Legislativa de São Paulo.
A PPP foi assinada em agosto de 2013 pela Fundação para o Remédio Popular (Furp), órgão vinculado à Secretaria da Saúde, com a Concessionária Paulista de Medicamentos (CPM), controlada pelo laboratório EMS, para fazer a gestão, operação e manutenção da fábrica de Américo Brasiliense, no interior paulista. À época, o então governador Geraldo Alckmin (PSDB) destacou que a CPM investiria cerca de R$ 130 milhões na unidade nos cinco primeiros dos 15 anos de concessão e produziria 96 tipos de medicamentos para serem distribuídos na rede pública de Saúde.
Após quase seis anos de concessão, porém, a concessionária só fez metade dos investimentos previstos - o que ocorreu após notificações sobre descumprimento do contrato - e produz apenas 13 dos 96 medicamentos, segundo a Secretaria de Saúde. A CPM, por sua vez, cobrava da Furp um ressarcimento de R$ 65 milhões referente até 2017 - os dados atualizados não foram divulgados nem pelo governo nem pela concessionária.
A dívida é resultado de distorção entre o preço dos remédios previstos no contrato da PPP e o valor de mercado dos mesmos medicamentos. Isso porque, entre maio de 2015 e julho de 2016, a Furp pagou para a CPM o mesmo valor das atas de registro de preço das compras de remédios feitas pela secretaria com outros fabricantes do mercado. Mas, na média, o valor era 53% menor do que o previsto no contrato da fábrica privatizada para os mesmos itens.
Após ser cobrada pela CPM, que alegava desequilíbrio no contrato, a secretaria passou a fazer a partir de agosto de 2016 repasses fixos de R$ 7,5 milhões mensais para a Furp pagar a concessionária, independentemente do volume de entrega de remédios pela fábrica.
O jornal teve acesso ao inquérito aberto pelo MP estadual, com base em uma denúncia feita por um funcionário da fábrica - a investigação está sob sigilo. Documentos oficiais da Furp e da secretaria mostram que há casos em que os preços previstos na PPP chegam a ser três vezes mais caros do que os de mercado. É o caso do clopidogrel, remédio usado na prevenção de enfarto e acidente vascular cerebral (AVC) em pacientes com predisposição. No início de 2018, cada remédio produzido na fábrica tinha custo de R$ 1,25 aos cofres públicos, enquanto o preço de referência no mercado era de R$ 0,26.
Em ofício enviado à secretaria em maio de 2017, a Furp destaca que a CPM não recolhe ICMS sobre medicamentos vendidos, não tem gastos com logística de distribuição, e o contrato não prevê ganhos de escala na produção, ou seja, redução do preço unitário para a compra de um volume maior.
Registros
A PPP previa também que a concessionária prestasse um serviço de assessoria à Furp na obtenção de registros para fabricação de medicamentos, autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Os registros feitos até hoje pela CPM, no entanto, são vinculados às licenças que já pertenciam ao Grupo EMS, chamados de "registros-clone". Eles são mais baratos e podem ser obtidos mais rapidamente, mas impedem a transferência de tecnologia à fundação, como definia o contrato.
A Furp não fez nenhum pagamento à empresa referente à obtenção de registros, por entender que a modalidade descumpria o acordo. A CPM diz que o contrato não determinou meios para a realização desses serviço e buscou "um trâmite mais célere, com a consequente rápida liberação dos medicamentos para a produção". A empresa e a secretaria dizem que o processo para repassar os registros definitivos à Furp já foram iniciados. Mas, dos 51 "clones" obtidos até agora, nenhum foi repassado até agora.
Ainda em 2017, a Furp listou todos os "pontos críticos" da PPP à secretaria, que pediu um parecer à Procuradoria-Geral do Estado (PGE) para saber se poderia pagar pelos medicamentos o dobro do que paga no mercado. A PGE deu parecer favorável à manutenção do contrato, dizendo que ele previa não somente a compra de remédios, mas também serviços de manutenção da fábrica. Apesar disso, a comissão do governo que acompanha as PPPs estaduais não descarta a possibilidade de extinção do contrato com a CPM. "Esse contrato de gestão da Furp será investigado porque existem indícios de algo que não deveria acontecer, que é interesse privado sobrestar o poder público", disse o deputado Edmir Chedid (DEM), presidente da CPI da Furp.
Comparação rejeitada
Apesar do longo imbróglio envolvendo os custos da PPP, a Secretaria Estadual da Saúde, a Furp e a CPM afirmam que não é possível comparar os preços dos remédios da fábrica concedida com os dos medicamentos compra diretamente no mercado porque o contrato de concessão inclui outros serviços, como manutenção da indústria.
Segundo a secretaria, foram realizados no ano passado "diversos investimentos na fábrica", como instalação de válvulas e linhas para purificação de água e obras de readequação estrutural, previstas em contrato. "A atual gestão da Furp tem total compromisso com a transparência e tem se reunido periodicamente com a CPM, por meio de um grupo de trabalho, para verificar as alternativas de otimização da fábrica", afirmou, em nota. Segundo a pasta, os preços das atas de registro "são exclusivamente para fornecimento de medicamentos" para o Estado, "mantendo assim diferença fundamental da natureza jurídica das complexas atividades realizadas pela CPM".
A CPM afirmou que os investimentos na infraestrutura da fábrica estão "100% de acordo com o cronograma acordado" com a Furp e que "todos os procedimentos adotados para a obtenção de registros de medicamentos foram feitos conjuntamente". A empresa afirmou ainda que "tem interesse na célere realização do processo de revisão contratual para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro da concessão que atualmente está em desfavor da concessionária".
Secretário da Saúde no governo Geraldo Alckmin, David Uip afirmou que o impasse na PPP era "conceitual" e "superava a função da secretaria". Segundo ele, o aumento da concorrência reduziu o preço dos genéricos no mercado e a crise econômica do País diminuiu o poder de compra do Estado. "Não é problema simples, tanto é que até hoje não foi resolvido". As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.