Entre as várias ideias defendidas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) para a área da segurança pública, uma das que causa mais polêmica é a mudança na legislação sobre a excludente de ilicitude. Prevista no Código Penal, a excludente é o que permite a qualquer pessoa cometer um ato geralmente criminoso sem ser punido por ele. É o caso de matar em legítima defesa, por exemplo. Porém, a proposta de alteração da lei, vista por Bolsoanro como necessária para assegurar o trabalho de policiais e outros agentes de segurança, deve ainda causar muita discussão.
Para entender esse debate, é preciso, em primeiro lugar, saber que a excludente de ilicitude já está prevista no Código Penal brasileiro. Segundo o artigo 23, um ato comumente considerado crime, como matar uma pessoa ou danificar o bem de outra pessoa, deixa de ser considerado criminoso se praticado: em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal, ou no exercício regular de direito.
"A excludente é uma situação que autoriza uma pessoa a atacar ou agredir outra, ou praticar uma conduta que, em tese, seria crime", explica João Paulo Martinelli, professor do curso de pós-graduação de direito penal da Faculdade de Direito do IDP-SP. "Por exemplo, se eu estou passando na rua e vejo uma criança dentro de um carro trancado, e ela está sufocando, e a única maneira de abrir o carro é quebrar o vidro, a lei autoriza que eu pratique esse ato. Inicialmente, quebrar o vidro seria crime, mas nesse caso, estou autorizado", exemplifica.
Assim, fica fácil entender porque o tema interessa especialmente agentes de segurança, como policiais civis e militares, que, ao realizar seu trabalho, estão sujeitos a atirar contra, e eventualmente matar, pessoas. É a excludente que faz com que, em caso de necessidade, um policial mate alguém e não seja punido criminalmente por isso.
Por que há polêmica?
É consenso entre especialistas em direito e representantes das forças de segurança que a excludente de ilicitude é uma ferramenta legal crucial. A discordância surge quando o debate é sobre a necessidade de modificar a lei para dar mais garantias a policiais e membros do Exército em função de policiamento (como ocorre na intervenção federal em curso no Rio de Janeiro).
[SAIBAMAIS]O debate existe porque a lei prevê que o autor do ato responderá criminalmente caso seja confirmado algum tipo de excesso. Além disso, mesmo quando praticado nas situações previstas no artigo 23, o ato é investigado, para que se verifique se a ação era mesmo necessária. Assim, caso um criminoso atire em um policial e ele revide e mate o cirminoso, uma investigação será aberta. "Tem que ter registro e investigação", diz Martinelli. "Mas o Ministério Público avalia e, se há uma situação evidente de legítima defesa, ele mesmo pede o arquivamento da investigação", explica Marinelli.
Quando restam dúvidas, prossegue o professor, é oferecido a denúncia para o início de um processo. Nele, pode haver condenação ou absolvição. "O que a lei não autoriza é o abuso de autoridade. Usar da violência indevidamente, e isso não serve apenas para policiais, mas para qualquer um", afirma.
O que poderia ser mudado?
Ainda não está claro o que Bolsonaro deve tentar mudar, com a ajuda de sua base de apoio no Congresso, na lei. Em seu programa de governo, entregue ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições, afirma-se que os "policiais precisam ter certeza de que, no exercício de sua atividade profissional, serão protegidos por uma retaguarda jurídica, garantida pelo Estado, através do excludente de ilicitude".
O presidente eleito já apresentou, em 2014, projeto de lei que altera a lei para deixar de punir o excesso culposo (sem intenção) de quem age em legítima defesa. Outra boa pista sobre o que o novo governo pode tentar aprovar sobre o assunto é um projeto de lei apresentado no ano passado por Onyx Lorenzoni, futuro ministro-chefe da Casa Civil de Bolsonaro.
No texto, Lorenzoni pede para que a excludente de ilicitude seja considerada em casos de defesa da residência ou do local de trabalho e também busca dar mais garantias a agentes públicos, impedindo, por exemplo, a prisão em flagrante de policiais.
Qual o possível problema?
Para o advogado Thiago Turbay, do Boaventura Turbay Advogados, a falta de clareza sobre o que pode ser feito pelo próximo governo impede uma análise mais apurada das possíveis consequências, mas ele vê com ressalvas a mudança. "Pelo que se tem de discurso, parece que o policial, se cometer alguma execução, sequer será investigado", comenta. "Na prática, na minha opinião, isso pode dar um salvo conduto para a prática de abuso. Como se ele não pudesse ser punido pelo único fato de ser policial", comenta.
Ainda para Turbay, a legislação atual já garante proteção ao policial. "Quando você analisa a excludente, já existe ao policial a possibilidade de legítima defesa. Só que isso será analisado pelo Ministério Público, pela autoridade policial. Eles farão uma investigação interna com isso", afirmou.
O temor de que a ampliação da excludente de ilicitude favoreça o aumento de abusos circula no meio jurídico. No mês passado, por exemplo, a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, coordenadora da Câmara Criminal da Procuradoria-Geral da República (PGR), se manifestou contra qualquer mudança na lei. "Como uma procuradora da área criminal que vivencia essa questão de crimes em que policiais são vítimas e são autores, entendo que a legislação já é suficiente", afirmou.
Algo semelhante afirmou o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, no início deste mês, embora o juiz federal não descarte algum tipo de alteração. "A nossa legislação, ao meu ver, já contempla essas situações de legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal. Tem que ser avaliado, no entanto, se será necessária uma regulação melhor;, disse.