Na unidade socioeducativa mista de Santa Maria, 40 meninas estavam apreendidas sem saber por quanto tempo ficariam reclusas. Vinte delas eram temporárias. O vácuo sobre o futuro, a falta de esperança e a solidão as acompanhavam durante dias e noites que se arrastavam atrás das grades. Sonhar passava a ser um privilégio. E não foi diferente com Talia*.
;Me chame de Talia, a filha de Zeus. Escolhi esse nome porque adoro mitologia grega. Não tem muitas meninas aqui na internação, e quase todas me conhecem. Eu não quero ser reconhecida, eu só quero ser ouvida. Essa é a minha voz. Uma voz de menor infratora;. É assim que Talia, uma das internas da unidade, se apresenta no livro Cartas de uma Menina Presa, que assina com a antropóloga Débora Diniz, com lançamento previsto para 28 de agosto, em Brasília.
A obra reúne a troca de cartas entre a pesquisadora e Talia, uma das três adolescentes com as quais manteve contato por correspondências durante a internação. O Correio conversou com a escritora, que passou 13 meses na unidade com a missão de entender o motivo de tantas jovens voltarem para o sistema quando obtinham liberdade. Só não esperava encontrar o fascínio das garotas pela escrita, pela literatura e pelo estudo.
Assim que chegou à unidade, Débora acompanhou as quatro equipes de plantão em ação, até que definiu com qual ia estar. Num local com jargões próprios, ficou conhecida entre as meninas por ;psicopata;, porque não tinha medo de conversar e estar com elas. Tampouco com os meninos internados. ;Queria ganhar a confiança de todos;, explica. Contudo, já no fim do experimento, passou a ser chamada de ;mãe das letras; -referência à ;mãe do crime;, figura ;materna; que auxilia as jovens na criminalidade - por incentiva-las a ler e a escrever na unidade.
Antes de começar o estudo, a antropóloga ensaiou a chegada, estudou a cor da roupa ou se pintaria as unhas. Resolveu ir de preto, com cabelos presos e sem esmalte nas mãos, pela discrição. ;Mas logo repararam que não era um preto qualquer. O sapato era de marca, os cabelos, bem cuidados;, conta, como se fosse uma tolice tentar esconder privilégios e a barreira enorme da sociedade que as separa.
O interesse pelas cartas surgiu naturalmente. A ideia de Débora era apenas fazer um formulário típico de pesquisa, ao qual já está acostumada. Mas as visitas nas celas passaram a ser muito curtas. As meninas queriam mais tempo para serem ouvidas. Quando souberam que estavam frente a uma pesquisadora, tiveram curiosidade sobre o trabalho dela. A vontade de escrever surgiu quando souberam das opiniões da antropóloga sobre o aborto, luta na qual Débora é militante, dentro e fora da vida acadêmica. ;Queriam fazer uma redação para argumentar o porquê de serem a favor ou contra a minha opinião. E, de redação em redação, começaram a desabafar sobre a reclusão e sobre como era a vida delas antes e depois do crime;, diz.
A maioria delas foi apreendida por tráfico de drogas. De maneira geral, segundo a escritora, todas já haviam se relacionado com alguém que estava inserido no crime ; pai, mãe, tia ou companheiro. Largavam a escola e buscavam a tentativa de mudar de vida. Não enxergavam outras oportunidades. Atenta, Débora usava um gravador para registrar as histórias.
O ócio tomava conta da rotina das meninas. Sem televisão, buscavam no livro escape para uma nova realidade. A maioria das obras lidas por elas era romance. Mas a variedade ofertada era escassa. Foi quando começaram a pedir à antropóloga novos exemplares. Como um ;clube do livro;, uma vez escolhiam o que queriam ler e, na semana seguinte, Débora decidia. Entre os livros lidos, estão Crime e Castigo, Carandiru, O Prisioneiro, Orange is The New Black, A Casa dos Mortos, O dono do Morro, As prisioneiras. O único negado pela coordenação da unidade foi 50 Tons de Cinza. ;Muitas tinham 13 anos. Realmente, não era o mais recomendável;, conta, com risadas.
A situação de internos
; Dos 26 mil adolescentes e jovens incluídos no sistema, em 2016, 18,5 mil estavam em internação (70%), 5,2 mil em internação provisória (20%) e 2,2 mil, em regime de semiliberdade (8%).
; Os estados com maior número de meninos e meninas nessa situação eram São Paulo (9.572), Rio de Janeiro (2.293), Minas Gerais (1.964), Pernambuco (1.615) e Rio Grande do Sul (1.348). A Região Sudeste era responsável por mais da metade (57%) de adolescentes e jovens atendidos.
; Os jovens estavam distribuídos em 477 unidades de internação, internação provisória e semiliberdade. O Sudeste concentrava 218 instalações desse tipo (45,7%), seguido pelo Nordeste, com 96 (20%); pelo Sul, com 74 (15,5%); pelo Norte, com 49 (10%) e pelo Centro-Oeste, com 40 (8,4%). Do total, 419 eram exclusivamente masculinas, 35 eram somente para mulheres, e 23, mistas.
Fonte: baseado no Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) de 2016, da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos (SNDCA/MDH).
Uma "prisão de papel"
Tanto em penitenciárias como em unidades de internação, a caneta só é permitida sob supervisão e por um tempo curto. Se afiada, pode se tornar uma arma e ameaça a segurança do local. A solução apareceu em São Francisco, nos Estados Unidos. Débora viajou à cidade para comprar canetas flexíveis, que foram aprovadas pela diretora do local. ;Eu comprava blocos e canetas. Conforme acabavam, me devolviam e eu repunha o estoque. Assim, a troca de cartas se tornou cada vez mais frequente;. Além da escrita, uma das garotas infratoras tinha o fascínio pela arte. Pediu telas e tinta, e passou a fazer quadros. ;Chamei uma aluna da Universidade de Brasília, que foi até lá ensinar algumas técnicas;, pontua.
Três jovens que trocaram cartas com Débora foram liberadas. Duas delas fazem faculdade de psicologia e serviço social no Iesb ; são bolsistas. Além dissso, estão empregadas. Talia, que também havia conseguido uma bolsa, não resistiu ao sistema. Dois meses após deixar a unidade ; e completar 18 anos ; foi presa. Grávida, pegou a pena de sete anos de reclusão. Com o bebê nos braços, entrou com um pedido para o semiaberto, devido a decisão do Conselho Nacional de Justiça, no início deste ano. O dinheiro arrecadado com a venda dos livros será todo dela, uma ajuda com as despesas da criança.
Talia foi a vencedora da melhor redação de um concurso promovido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em homenagem ao Dia dos Professores. Na competição, adolescentes tinham de escrever cartas ou produzir vídeos explicando o que fazia de seus professores heróis. À época estudante do ensino médio, homenageou Débora no texto. ;Em um lugar que só tem grades, ela chega com livros nas mãos. Toda frágil, passa pelo corredor pesado de maldades, para na porta do meu quarto e abre um sorriso que reflete um futuro cheio de promessas;, diz um trecho do texto.
*Nome fictício em obediência ao Estatuto da Criança e do Adolescente
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- Livro: Cartas de uma menina presa
- Autora: Débora Diniz e Talia
- Data: 28/8
- Horário: 19h
- Local: Café Objeto Encontrado
- Entrada gratuita
- Preço sugerido do livro: R$ 30