"O mandato de uma mulher negra, favelada, periférica, precisa estar pautado junto aos movimentos sociais, junto à sociedade civil organizada, junto a quem está fazendo algo para nos fortalecer naquele local. E a gente objetivamente não se reconhece, não se encontra, não se vê. A ligação é o que eles apresentam como nosso perfil. Então, é preciso ter a nossa casa, ter o nosso lugar, ter o nosso período, ter o nosso lugar de resistência. Porque a gente sabe que a gente tá ativa, tá lutando e tá resistindo o tempo todo, mas com alguns períodos onde a gente se fortalece na luta."
Nas imagens de um ao vivo transmitido pelo Facebook é possível ver Marielle Franco sorrindo e fazendo gestos enquanto pede às mulheres da roda para que o evento "Jovens Negras Movendo Estruturas" fosse um bate-papo descontraído, "pelas dores e pela resistência das mulheres negras". Era 14 de março quando, por mais de uma hora e meia, em uma sala na Rua dos Inválidos, na Lapa, no Rio de Janeiro, o grupo de mulheres seguiu a proposta da vereadora e debateu questões importantes para o reconhecimento da mulher negra na sociedade brasileira. No mesmo dia, poucas horas depois do encontro, Marielle foi executada. Há exatos 30 dias. Desde então, pouco se sabe sobre o que, de fato, motivou a morte da vereadora carioca, de 38 anos. Muito menos quem são os assassinos, dela e de seu motorista, Anderson Pedro M. Gomes, 39.
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"Pra sair daqui com o corpo, com o coração e com a mente fortalecida para as batalhas que virão", concluiu Marielle Franco ao fim da transmissão naquele dia. Momentos depois, no entanto, o rosto, as ideias, o ativismo e a vida da vereadora foram expostos na mídia e na internet em publicações sobre o brutal assassinato dela e de Anderson.
[SAIBAMAIS] Até hoje ninguém foi preso ou apontado pelos investigadores como suspeito pela dupla execução. As apurações, segundo a Polícia Civil do Rio de Janeiro, com apoio da Polícia Federal (PF), seguem em sigilo e com muita pressão popular por avanços, mas sem um ponto final.
No dia seguinte aos assassinatos, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um procedimento instrutório que podia resultar na federalização da investigação. A iniciativa de propor uma federalização da persecução penal partiu da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, um aviso de que os órgãos federais estão acompanhando de perto o crime ainda sem solução.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) tem cobrado das autoridades brasileiras a apuração dos assassinatos. Uma audiência está marcada para 9 de maio na República Dominicana, onde comissários da organização devem questionar representantes do estado sobre o crime e sobre a situação da intervenção militar no Rio de Janeiro.
A Anistia Internacional ressaltou que as autoridades brasileiras devem priorizar a resolução dos assassinatos e levar todos os responsáveis à Justiça. "A sociedade precisa saber quem matou Marielle e por quê. A cada dia que passa e este caso permanece sem respostas, o risco e ameaças em torno dos defensores e defensoras de direitos humanos aumentam", disse Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil.
Nas redes sociais e na mídia, os pedidos por informações que ajudem a elucidar o crime são sempre veiculados cada vez que uma notícia sobre Marielle Franco é veiculada. As informações podem ser passadas para o Disque Denúncia, através dos seguintes canais: Whatsapp ou Telegram do Portal dos Procurados: (21) 98849-6099, para a Central de Atendimento: (21) 2253-1177, pelo Facebook ou pelo aplicativo Disque Denúncia RJ. O anonimato é garantido.
Investigação a passos lentos
Na terça-feira (10/4), policiais civis e federais que investigam o caso divulgaram a informação de que conseguiram colher digitais parciais do assassino ou da pessoa responsável por municiar a pistola 9mm usada no crime. As digitais estavam em cápsulas achadas por peritos na esquina das ruas João Paulo I e Joaquim Palhares, no Estácio, bairro onde as vítimas foram atacadas. A princípio, segundo informou o jornal O Globo, os fragmentos não seriam suficientes para uma comparação com impressões digitais armazenadas em bancos de dados da polícia, mas poderiam ser confrontadas com as de eventuais suspeitos.
Vinte e três dias após o atentado contra Marielle, outro assassinato aconteceu no Rio e também continua sem explicação. O líder comunitário Carlos Alexandre Pereira Maria, 37, foi morto a tiros na noite de domingo (8/4), na Zona Oeste da capital fluminense. Ele era colaborador do vereador Marcello Siciliano (PHS), ouvido no inquérito que apura as mortes da vereadora do PsOL e do motorista Anderson Gomes.
No caso da morte de Carlos Alexandre, uma das linhas de investigação é a de que ele teria sido morto por, supostamente, ter ligação com uma milícia da região. A polícia também não descarta que o crime tenha conexão com o trabalho do líder comunitário desenvolvido junto ao parlamentar. Carlos era responsável por ouvir os moradores, identificar problemas na comunidade e levar as informações até o gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) para que o vereador pudesse intervir em melhorias para a região.
Atos no Brasil e no mundo pedem justiça
"Vamos juntos e vamos ocupar tudo", disse Marielle ao fim da transmissão ao vivo no Facebook, pouco antes de sua morte. A mobilização que começaria a partir daquele dia ganhou novo tom, para que os projetos da vereadora não fossem paralisados. O lamento pelas duas mortes motivou diversos atos programados para este sábado (14/4), quando a barbárie completa um mês. Intituladas "", as ações são organizadas pelo partido da vereadora, o PSOL. Movimentos sociais também se envolverão nas manifestações que estão previstas para começar ainda durante a madrugada.
Os organizadores planejam amanhecer colorindo praças com flores, já que a vereadora tinha verdadeira admiração por elas. Durante os atos devem ocorrer também outras intervenções culturais, conversas com a população com o objetivo de manter viva a memória de Marielle e de Anderson. As informações sobre os eventos que devem ser realizados ao longo do dia , onde há uma memória sobre Marielle Franco, como organizar ou participar de ações, além de banners e ilustrações que as pessoas podem usar durante os atos.
No Rio, há programações em vários bairros e, às 18h, será realizada uma marcha desde a Lapa até o Estácio, onde os dois foram assassinados. No mesmo horário, no Complexo de Maré, onde Marielle cresceu, será realizado o sarau de luta "Eu sou porque NÓS somos", no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM).
No DF, há ações em ao menos três cidades. Em Ceilândia, a Rede Emancipa DF informa que não poderá acompanhar o amanhecer, mas que ao final de aulas que a instituição oferece, por volta das 18h, será feito um ato em frente ao Centro de Ensino Médio 3, em Ceilândia Sul. "Marielle tem uma representatividade muito forte. É uma mulher que saiu da periferia, negra, lésbica, mãe, representa muitos de nós. O assassinato dela mostra que a gente não pode mais deixar para amanhã. Ficou latente essa questão de urgência (na solução do caso), porque a gente (os negros) não aguenta mais morrer o tempo todo", afirmou Raquel Vieira, coordenadora do projeto social.
Em Planaltina, a manifestação pacífica será na Praça do Museu. ;Esse Amanhecer por Marielle e Anderson vai relembrar esse um mês para dizer que a luta e as vozes continuam, a gente quer reafirmar que a morte dela não foi em vão;, comenta uma das organizadoras do evento, a pesquisadora Tamara Naiz, de 33 anos.
Estão previstas ainda atividades como aula de ioga, oração dos movimentos sociais, café da manhã coletivo, rodas de conversas e vivências, apresentações de versos, rimas, poesia e música, roda de capoeira, oficinas de arte, além de uma homenagem a Marielle, Anderson e Jussélia Martins, na última terça-feira (10/4). ;É um jeito de dizer que não aceitamos mais nenhum tipo de violência;, comenta Tamara. As atividades na praça começam às 6h da manhã e devem ir até às 12h. Há outra mobilização prevista para ocorrer na Rodoviária do Plano Piloto.
Políticos ligados ao PSOL também pretendem participar das atividades do Amanhecer por Marielle e Anderson nas cidades onde os eventos vão acontecer. Mas antes, ainda na noite desta sexta-feira (13/4), está programada uma vigília, em frente ao Ministério da Justiça, das 18h às 22h. "Estamos convocando a vigília para reformar a cobrança por Justiça para Marielle e Justiça para Anderson", informou o partido. Há atos programados em outros estados e até em outros países, como Estados Unidos, Alemanha, França, Hungria, Itália, Suécia, Argentina, Uruguai e Peru.
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