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Justiça Militar pode voltar a julgar crimes cometidos por soldados

Senado deve votar, na semana que vem, o projeto que devolve para as Forças Armadas a prerrogativa de julgar homicídios cometidos por soldados. Desde 1996, a tarefa cabe aos tribunais comuns. Para o Exército, o texto dá respaldo jurídico em missões internas



A pedido do governo do Rio de Janeiro, o Ministério da Defesa enviou, nas últimas semanas, 950 homens do Exército para ajudar na operação contra traficantes na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Diante de uma crise sem precedentes na segurança pública nacional, o uso das Forças Armadas em missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) tem sido cada vez mais comum. O tema serviu para parlamentares retomarem um polêmico debate: a transferência para a Justiça Militar do julgamento de crimes cometidos por militares contra civis durante essas operações.

No último dia 14, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado aprovou na íntegra o Projeto de Lei 44/2016, do deputado federal Esperidião Amin (PP-SC), que dispõe sobre crimes dolosos contra a vida cometidos por militares. Com um pedido de urgência do líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), o texto foi enviado ao plenário e tem acordo para ser votado na próxima semana. Faz parte do pacote de projetos reivindicado pela chamada Bancada da bala ao presidente Michel Temer durante os acertos de votos na Câmara sobre a primeira denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o chefe do Executivo.

Autor da proposta, Amin conta que o projeto em discussão não é o dele e o que está acontecendo é uma ;fraude ideológica em função das circunstâncias;. O deputado explica que elaborou a proposta por causa das Olimpíadas realizadas no Rio de Janeiro em 2016 e deixava claro no texto que a transferência do julgamento dos crimes para a Justiça Militar seria somente até o fim daquele ano. ;Sempre defenderei o uso das Forças Armadas numa situação específica, planejada e com data de término.;

[SAIBAMAIS]Amin acrescenta: ;Não concordo com esse decreto do governo e o uso que ele está fazendo com as Forças Armadas de complemento de uma segurança pública falida;. Ele se refere ao decreto assinado por Temer em julho, determinando a permanência de militares no Rio até o fim deste ano, com a possibilidade de extensão. ;Não se pode usar Força Armada como complemento de polícia. Espero que isso não termine em desastre. É como colocar em uso um carro de uso restrito, limitado e perigoso porque não se tem dinheiro ou coragem para comprar um pneu novo;, compara.

O diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, explica que um vácuo jurídico (veja Memória) causou a polêmica em relação aos julgamentos de militares que cometem assassinatos durante uma GLO, mas que a alteração é arriscada. ;Quando um soldado do Exército, por exemplo, está em missão de Garantia da Lei e da Ordem, ele está cumprindo a função de policiamento e não de defesa para a qual foi treinado. Logo, deve ser julgado de acordo com a função exercida;, acredita.

Além disso, Lima ressalta que é uma questão principiológica. ;O sigilo da Justiça Militar é visto com uma certa tranquilidade quando se trata de defesa, mas, em segurança pública, a transparência é a regra", pondera. "Envolver ações de policiamento das Forças Armadas numa lógica de segredo não é saudável nem para a instituição, uma das mais respeitadas pela população. A regra constitucional de igualdade para todos é mais adequada em casos de segurança pública.;

Segurança

De acordo com a assessoria do Exército, o projeto dá segurança jurídica ao militar durante as operações de GLO, ;cada vez mais frequentes;. ;O emprego de soldados treinados e equipados deve ocorrer sob a égide da legislação penal militar. Atualmente, em alguns casos, é aplicável a legislação penal comum. Isso pode trazer prejuízos para a carreira profissional do militar, caso venha a se envolver num confronto, e para a operação em si, já que uma pronta reação pode ficar comprometida;, afirma, por meio de nota.

Questionado se a competência da Justiça Militar tende a ser mais corporativista que a da comum, o Exército diz que, ;ao submeter os casos de crime à Corte, se ganha em celeridade e, principalmente, no grau de discernimento do magistrado acerca das particularidades da atividade militar;. Segundo dados fornecidos pelo Superior Tribunal Militar (STM), um homicídio demora, em média, 8,8 anos para ser julgado no Tribunal do Júri, enquanto na Justiça Militar o mesmo processo leva, em média, três anos para chegar a uma solução.

;Estamos julgando homens e mulheres que vivem sob a égide da hierarquia e da disciplina, de quem é exigida uma conduta muito mais rígida do que a do cidadão comum, pois, além de serem responsáveis pelas armas da Nação e garantir a nossa segurança externa, atualmente são requisitados para missões quando o Estado falha em garantir a segurança interna dos cidadãos;, destaca o STM.


;Não concordo com esse decreto do governo e o uso que ele está fazendo com as Forças Armadas de complemento de uma segurança pública falida;
Esperidião Amin, deputado federal, autor do Projeto de Lei 44/2016

;Emprego de soldados treinados deve ocorrer sob a égide da legislação penal militar. Atualmente, em alguns casos, é aplicável a legislação penal comum. Isso pode trazer prejuízos;
Trecho de nota do Exército



Memória


Regra feita na ditadura

O Código Penal Militar de 1969, elaborado durante a ditadura militar, estabeleceu que os delitos dolosos contra a vida de civis seriam julgados pela Justiça Militar. Entretanto, na década de 1990, diante de casos de repercussão nacional e até internacional sobre homicídios praticados por policiais militares ; entre eles, a chacina de Eldorado do Carajás, no Pará, e da Candelária, no Rio de Janeiro ;, a Lei 9.299/96 determinou a transferência do julgamento desses crimes cometidos por militares para a Justiça comum, mais especificamente, o Tribunal do Júri.

Em 1996, entretanto, ainda não havia regulamentação para as missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). O vácuo jurídico criou uma polêmica. Atualmente, se um soldado do Exército cometer um homicídio dentro de um quartel, ele é julgado pela Justiça Militar. Se matar um civil durante uma GLO, o caso será analisado pelo Tribunal do Júri.

O Exército defende que apenas militares dos estados e do DF, como policiais militares e bombeiros, sejam julgados pela Justiça comum. A competência para membros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica seria transferida à Justiça Militar. E as polícias militares das unidades da Federação querem que os casos sejam remetidos à Polícia Judiciária Militar.



O que diz o PL 44/2016?

O projeto transfere à competência da Justiça Militar da União a análise de processos de crimes dolosos contra a vida de civis cometidos sob ordens do presidente da República ou do ministro da Defesa, em ação que envolva a segurança de instituição ou missão militar ou em atividade de natureza militar, de operação de paz ou de garantia da lei e da ordem, realizadas em conformidade com a Constituição, o Código Brasileiro de Aeronáutica ou o Código Eleitoral. Como o texto foi feito especificamente para as Olimpíadas, há um compromisso do governo de retirar, por meio de veto, os termos referentes ao evento.