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Em um cenário de rebeliões em presídios, superlotação e assassinatos como os que foram assistidos no Brasil no início deste ano, o tema da crise penitenciária instiga discussões sobre quais seriam as saídas possíveis. Uma delas, de acordo com o advogado e deputado português Vitalino Canas, é a descriminalização do uso de drogas.
Autor de projeto que se tornou lei em Portugal há 16 anos, Canas defende que os consumidores de drogas não sejam tratados como criminosos, mas como pessoas que precisam de cuidados de saúde. Isso, no entanto, não significa que as drogas estão legalizadas no país. Lá, pessoas flagradas com um volume menor do que o equivalente a 10 doses da droga são liberadas pelos policiais sem pagar multa nem serem presas, e são convidadas a participar de um acompanhamento preventivo para diminuir ou abolir o consumo. ;O consumidor de droga não tem que ser aprisionado, mas, sim, ser cuidado para ser trazido novamente para a sociedade;, defende o advogado.
[SAIBAMAIS]Quando usar drogas deixou de ser crime em Portugal, o que aconteceu, segundo Canas, surpreendeu quem era contra a mudança na lei: ;Houve diminuição do uso de drogas, de mortes resultantes das drogas e da incidência de HIV;. Além disso, ;hoje em dia o sistema penitenciário está mais liberto das questões relacionadas às drogas. O sistema prisional não tem que se preocupar com consumidores de drogas, mas sim com os traficantes;, ressaltou.
Canas foi convidado para contar a experiência portuguesa no seminário que discutiu o sistema penitenciário e a crise de segurança pública no Brasil, promovido pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Apesar das poucas horas de descanso após um voo de aproximadamente 10 horas, o político compartilhou com o Correio o que acredita ser fundamental para que o Brasil adote uma estratégia semelhante. Na entrevista, ele também comentou a política das internações compulsórias de usuários de crack, adotada pelo prefeito de São Paulo, João Doria.
Em seu pronunciamento quando a lei de descriminalização do uso de drogas foi aprovada, o senhor disse que o consumo não era crime, mas elas não estavam sendo legalizadas. Qual é a diferença entre descriminalizar e legalizar as drogas?
A grande diferença é que descriminalizar significa que os consumidores, ou pelo menos parte deles, deixam de estar sujeitos à possibilidade de terem de cumprir uma pena na cadeia resultante de uma situação criminal. Na experiência que vem sendo implementada em Portugal, o consumidor continua podendo ser penalizado, mas não com uma pena criminal. Não há liberalização, há descriminalização das drogas. O consumo continua sendo proibido, continua a ser algo suscetível à pena.
Qual foi o impacto dessa lei? O que aconteceu nos primeiros anos da descriminalização?
Verificou-se que, a partir do momento em que nós aprovamos a descriminalização do consumo, tivemos gradualmente vários resultados muito positivos. Tivemos a possibilidade de verificar que o consumo não aumentou, ao contrário do que os opositores da reforma achavam. Eles entendiam que descriminalizar implicaria um aumento do uso de drogas. Pelo contrário, o que se verificou foi uma diminuição do uso, de mortes resultantes das drogas e da incidência de HIV. Nós tínhamos uma tendência de aumento de pessoas toxicodependentes infectadas com o vírus. A partir de 2001, essa tendência começou a se inverter.
E quais foram os resultados nos sistemas prisional e de Justiça?
Nós deixamos de ter uma pressão imensa sobre o sistema de segurança pública, sobre o sistema Judiciário e o sistema penitenciário. A partir do momento em que a maior parte dos consumidores não tem de ser sujeita ao sistema judiciário, a um julgamento, nem tem de cumprir pena numa prisão, naturalmente isso vai diminuir o número de processos nesse sistema e no de segurança pública. Os membros dos corpos de segurança deixam de ter uma preocupação central com o consumidor e são obrigados a ter uma preocupação central com traficantes. O sistema de justiça também deixa de ser muito sobrecarregado. Hoje em dia, o sistema penitenciário está mais liberto das questões relacionadas às drogas. É claro, continua tendo traficantes, eles continuam sendo apanhados e condenados, mas o sistema penitenciário não tem que se preocupar com consumidores de drogas, mas sim com os traficantes.
A ideia de que o consumo de entorpecentes deveria deixar de ser considerado um delito para passar a ser tratado como uma doença funcionou no país? Teve algum aumento no gasto com saúde pública?
A ideia funciona porque os gastos passaram a ser feitos com maior efetividade. O que acontecia antes da descriminalização era que o consumidor era preso pelas forças de segurança, era condenado e ia para a cadeia. Na prisão, ele cumpria pena, mas o usuário de drogas na cadeia é outro problema, porque ele tem problemas de saúde e as cadeias normalmente não estão preparadas para cuidar de saúde. Isso significa que o consumidor continua a consumir na prisão e, muitas vezes, os problemas de consumo se agravam: o consumidor de haxixe torna-se consumidor de heroína ou outras drogas igualmente graves. Os recursos que são hoje despendidos com os consumidores, que são enquadrados numa estrutura administrativa de saúde, não de Justiça, mesmo que sejam mais ou menos os mesmos recursos, eles são mais eficazes.
E quais são os riscos para os países que vão nessa direção da descriminalização das drogas?
Quando discutimos e apresentamos essa legislação em Portugal, em 2000, havia muita gente dizendo que ;vai vir o turismo da droga; Portugal vai se tornar um paraíso para os consumidores; toda a Europa e todo o mundo vão vir consumir droga porque teremos uma legislação mais flexível e liberal; os jovens vão passar a consumir exponencialmente;. Nada disso aconteceu. Hoje em dia, o consumo dos jovens é inferior àquele que era e não houve nenhum boom turístico de droga, não há nenhum indicador de que Portugal tenha sido utilizado por pessoas que vêm de fora para consumir droga. Mas cada país é um caso. Não posso garantir que se o Brasil ou qualquer país adotar a mesma regra, terá os mesmos resultados. Mas uma situação que não vai piorar com certeza é a penitenciária, e essa situação penso que é a mais complexa, porque esse é o meio que agrava os problemas da droga. Ouvi dizer que, no Brasil, muitas mulheres são condenadas como traficantes porque são forçadas a levar drogas para os seus familiares: maridos, filhos, irmãos. Tornam-se por essa via traficantes e também vão para a cadeia. Isso é mais uma pressão sobre o sistema penitenciário, uma pressão desnecessária porque a mulher faz isso por ser pressionada a fazer. Isso também desapareceu em Portugal. Portanto, uma coisa me parece certa: descriminalizar as drogas não piora, pelo contrário, melhora a situação penitenciária.
Mas no que pesa a diferença entre os dois países, focando Portugal e Brasil, tendo em vista o tamanho territorial, há chances de a estratégia usada lá funcionar aqui? O que deve ser levado em conta nessa discussão da descriminalização das drogas?
Baseado naquilo que ouvi no seminário, haverá dois domínios onde deverá ter mais esforço se o Brasil decidir por uma solução semelhante à portuguesa. Primeiro, tem que se ter noção de que uma reforma dessa natureza visa orientar o trabalho das forças de segurança contra o tráfico, é uma reforma que só pode ser justificada se o foco da segurança pública deixar de ser o consumo e passar a ser o tráfico. Em segundo lugar, uma solução dessa natureza só tem bons resultados se houver um contexto de serviços de prevenção, de tratamento, de acompanhamento dos consumidores. Nós só podemos garantir que a situação vai melhor quando pudermos oferecer ao consumidor toxicodependente encontrado com posse de droga a alternativa de tratamento. Se for um consumidor ocasional, temos bom resultado se pudermos controlar se ele continua ou não a consumir. Não significa que o Estado deixa de ter preocupações e gastos. O que se altera é o foco. O usuário de drogas deixa de ser preocupação do sistema de Justiça e prisional e passa a ser do sistema de tratamento e prevenção.
A efetividade da legislação também passa por uma mudança na consciência da população sobre a imagem de quem é usuário de droga. Como que o Estado português promoveu essa consciência de que o usuário não é um criminoso, mas alguém que precisa de cuidados e do apoio da sociedade?
Às vezes, é difícil distinguir consumidor de traficante. Quem conhece o meio sabe que na mesma pessoa pode existir as duas condições: de consumidor e de traficante. De uma forma geral, a comunidade tende a olhar para o consumidor e para o traficante confundindo os dois planos. Mudar isso é um trabalho importante que tem que ser feito. Quando fizemos a descriminalização, enfrentamos as pessoas que eram contra, e muitas dessas pessoas achavam que, descriminalizando, os traficantes teriam maior margem de atuação. Como políticos, temos que ter a coragem de enfrentar essa realidade e temos que saber comunicar, demonstrar que, muitas vezes, o consumidor é um irmão, um amigo, alguém que conhecemos na escola, que teve uma decisão irrefletida. O consumidor de droga não tem que ser aprisionado, mas, sim, ser cuidado para ser trazido novamente para a sociedade. Para isso, é necessário coragem e, às vezes, tomar decisões arriscadas.
O prefeito de São Paulo quer fazer a internação compulsória de usuários de crack em clínicas de reabilitação. Na sua opinião, essa estratégia funciona?
Eu não acredito que ações de segurança contra a vontade das pessoas, dos usuários de drogas, sejam eficazes. O que posso dizer é que, conhecendo a lógica dos consumidores, sobretudo os toxicodependentes, é muito difícil recuperá-los sem despertar neles a vontade no sentido de se recuperarem. Tenho dúvidas. A princípio sou avesso a qualquer tipo de medidas compulsórias e sua efetividade. Mas não quero ser aqui totalmente fechado em relação à medida tomada em São Paulo, não conheço os resultados. Acho que, quando estamos em situações de urgência, e o crack é uma droga em si muitíssimo perigosa, muitas vezes os políticos são forçados a tomar decisões arriscadas para tentar solucionar.