A primeira bailarina clássica trans do Brasil fez a cirurgia de transgenitalização ; mudança de sexo ; no único espaço do Norte e Nordeste do país a oferecer o serviço por meio do Sistema Único de Saúde (SUS): o Espaço de Cuidado e Acolhimento de Pessoas Trans, localizado no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife. O ambulatório é referência na área, mas tem uma demanda muito superior à capacidade. Atualmente, a fila de espera para fazer a cirurgia é de 13 anos.
A estimativa é da psicóloga Suzana Livadias, coordenadora do Espaço Trans. Segundo ela, desde a inauguração do ambulatório, são feitas, em média, dez cirurgias de redesignação sexual por ano. A sala de cirurgia e dois cirurgiões são disponibilizados uma vez por mês.
Atualmente, 230 pessoas são atendidas pelo local. Dessas, 170 nasceram com a genitália masculina, mas se identificam como mulheres e cerca de 130 querem fazer a mudança de sexo. ;Em tese, então, são 13 anos, pelo menos neste momento. Nosso sonho é aumentar para duas cirurgias por mês;, diz a psicóloga.
Além da fila para a cirurgia, existe uma demanda reprimida para atendimento psicológico no ambulatório. Cerca de 170 pessoas aguardam para iniciar esse tratamento, e quatro entram no serviço por mês. ;A gente hoje está chamando a pessoa que se inscreveu em maio de 2016;, conta Mônica Mota, psicóloga que trabalha no Espaço Trans.
A transgenitalização de homem para mulher, uma das cirurgias de redesignação sexual, é garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2008. O serviço foi ampliado com a Portaria n; 2.803, do Ministério da Saúde, inserindo novos procedimentos hospitalares e métodos para a mudança de mulher para homem. Estão incluídos procedimentos cirúrgicos como a colocação de prótese mamária e a tireoplastia (mudança da voz), a terapia com hormônios e atendimentos especializados, psicológico e de assistência social.
A portaria estabelece regras para realização dos procedimentos cirúrgicos, entre elas, o acompanhamento psicoterápico por pelo menos dois anos e a necessidade de um laudo psicológico ou psiquiátrico diagnosticando a transexualidade.
;O expresso desejo e autodenominação é a primeira coisa. Seria autoritarismo demais definir quem vai e quem não vai. Ao longo dos dois anos se o desejo perdurar a pessoa faz [a cirurgia];, diz a coordenadora.
Há ainda uma limitação de idade: 18 anos para atendimento no ambulatório e hormonioterapia e 21 anos para intervenções cirúrgicas.
Mais que uma cirurgia
Apesar da alta procura pela redesignação sexual, a coordenadora do Espaço Trans lembra que o ambulatório oferece diversos serviços complementares. Para ela, o atendimento integral garantido pela equipe formada por ginecologista, psicólogo, psiquiatra, urologista, fonoaudiólogo, endocrinologista e assistente social tem um papel mais amplo que uma mudança corporal: é a problematização de como a pessoa entende o seu gênero.;Muitas vezes o entendimento é que para ser mulher ou homem você tem que passar pela cirurgia de trangenitalização. Se, desde o início, não é a genitália que definiu as pessoas como tal, então por que vamos afirmar que elas serão [homens ou mulheres] a partir da cirurgia? É um paradoxo, uma questão para pensar;, diz Suzana.
;O que é importante para gente é poder entender os sofrimentos vividos, de onde eles vêm. Se puder pensar direitinho quem tem que fazer a cirurgia é a sociedade, que entende o homem ou a mulher a partir apenas do corpo;, completa.
Luclécia Amorim, de 29 anos, é atendida há um ano e meio no Espaço Trans. Chegou com o objetivo de fazer uma cirurgia de transgenitalização. Mas, ao longo do processo de atendimento por uma equipe multiprofissional e das conversas em grupo, ela resolveu fazer somente a terapia com hormônios.
;Eu já era uma mulher independentemente do meu órgão sexual;, afirma. ;Foi um processo super natural, nada induzido. A maturidade também ajuda muito. São dois anos, mas parece que são 20. E tudo que você vai passando, suas transformações corporais, você vai vendo que o que precisava era da imagem, não era a questão sexual, que estava muito bem resolvida. Meu problema era só com a estética. Eu precisava olhar no espelho e me identificar como uma mulher;, destaca Luclécia.
Mudança de vida
A agente de endemias Gyslaine Barbosa, de 28 anos, aguardou seis anos para conseguir ter o corpo que correspondia à identidade que ela carregava desde criança. Ela já era atendida no Hospital das Clínicas desde que a cirurgia era feita em uma linha de pesquisa científica. O serviço foi habilitado pelo Ministério da Saúde em outubro de 2014. Depois disso, Gyslaine ainda teve que esperar mais dois anos para cumprir as regras exigidas.Moradora de Surubim, município localizado a 120 km da capital pernambucana, ela enfrentou uma rotina exaustiva para receber os atendimentos. ;Meia-noite já tinha que pegar o ônibus para estar no hospital [de manhã]. E era duas vezes por mês. A gente não dormia, não comia. E, quando terminava a consulta ao meio-dia, ainda tinha que esperar o ônibus que passa às 17h recolhendo o pessoal. Quando eu chegava em Surubim já eram 20h, até chegar em casa era meia-noite.;
Ela conta que viveu como homem por muitos anos até que não aguentou mais esconder como se sentia. ;Tive que crescer como um menino. Ninguém podia saber o que eu estava sentindo, o que eu era. Porque ninguém acreditava. Mas chegou um certo ponto que eu não aguentei mais. Eu tinha meu emprego, terminei meus estudos, era gerente de loja e cheguei no meu limite. Cheguei chorando na loja que minha irmã trabalhava. Eu desabafei: eu sou uma mulher, não sou esse corpo que eu sou. Só tenho dois caminhos: ou eu abro para todo mundo ou vou correr o risco de me matar.;
A bailarina clássica Eduarda Vitória Cassiano, de 38 anos, cujo nome artístico é Duda Mel, também fez parte do primeiro grupo atendido no ambulatório pernambucano. Sua história com a transexualidade começou aos 14 anos, em uma época em que se conhecia pouco sobre o tema. A cirurgia de redesignação, por exemplo, era proibida até 1997. A coragem de expor sua identidade de gênero veio da dança.
;Eu cheguei e disse a minha professora que ia sair do balé porque eu queria mudar mais o meu corpo. Ela disse que não, que não ia me abandonar. Ela foi como minha mãe;, conta.
Duda trabalhou como professora auxiliar por 15 anos. Por muito tempo dançou como menino. Mesmo assim, enfrentou preconceito.
;Teve uma escola que não aceitou o fato de eu ser auxiliar. Minha professora disse ;onde não couber você não me cabe;. A gente foi para outras escolas que me aceitaram. Aí vieram as mudanças no meu corpo, meu cabelo eu deixei crescer;, conta.
Depois de mais de 10 anos, ela passou a dançar como menina, usando a sapatilha de ponta ; só usada por mulheres.
Duda Mel diz que a cirurgia mudou sua vida. Nas aulas, as crianças a chamam de tia. E em casa, onde o espelho era proibido, hoje só em seu quarto há cinco deles. Coisas simples como usar um biquíni já não são um problema. E coisas maiores, como estar em paz consigo mesma, foram possíveis. A cirurgia, segundo ela, foi muito além da estética.
;[Quando eu era pequena] Eu pensava: vou passar embaixo do arco-íris e vou sair mulher. Eu vou dormir agora chorando, com raiva, e quando acordar eu vou acordar mulher. O arco-íris nunca chegou, mas hoje eu consegui.;