Em apenas 30 dias, programas de rádio e TV promoveram 4,5 mil violações de direitos, cometeram 15.761 infrações às leis brasileiras e multilaterais, como a Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e desrespeitaram 1.962 normas autorregulatórias, como o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Os dados são da pesquisa lançada hoje (16) pela Andi - Comunicação e Direitos.
Este é o terceiro volume do guia de monitoramento Violações de direitos na mídia brasileira, produzido pela Andi, organização não-governamental (ONG) criada há 23 anos e que trabalha com políticas de comunicação, na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes e pela inclusão e sustentabilidade.
;O resultado geral indicou para um nível de violações incompatível com a democracia;, informou a coordenadora do guia, Suzana Varjão.
Segundo a ONG, o monitoramento revelou um volume de violações e infrações que ;evidencia o caráter não circunstancial das práticas anti-humanistas e antidemocráticas desse modelo de comunicação, além de expor padrões discursivos incompatíveis com a democracia, com ataques reiterados a suas instituições e instrumentos, discursos de ódio contra o campo de defesa dos direitos humanos e combate público aos parâmetros que regem o exercício da imprensa;.
A análise de mídia foi feita em 28 programas ;policialescos;, veiculados entre 2 e 31 de março de 2015 em Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Campo Grande (MS), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP).
Comunicação de massa
De acordo com a Andi, as informações reunidas na publicação apontam na direção de um modelo de comunicação híbrido, pautado por interesse comercial, que alia características de propaganda ideológica com elementos de entretenimento. ;O combate ao jornalismo chega a ser explícito. Há uma recusa de grande parte dos profissionais de imprensa de classificar esses problemas como jornalísticos;, afirmou Suzana.
Suzana esclareceu que esses programas são um fenômeno dentro da comunicação de massa e que agrega o jornalismo. ;Precisamos abrir debate com os jornalistas. A imprensa está sendo atingida, usurpando a ética que sempre regeu. Uma de nossas funções é defender o Estado Democrático de Direito e estão discursando contra as leis, defendendo o uso da Lei de Talião - olho por olho e dente por dente. Podemos afirmar que esse fenômeno vai contra nosso processo civilizatório;, argumentou Suzana. ;Não se trata de jornalismo. Está mais próximo da propagando ideológica negativa e muito próximo do entretenimento do horror.;
Monitoramento de violações
Das 4,5 mil violação cometidas, 1.704 foram exposições indevidas de pessoas, 1.580 desrespeitos à presunção de inocência, 614 violações do direito ao silêncio, 295 exposições indevidas de famílias, 151 incitações à desobediência às leis ou às decisões judiciárias, 127 incitações ao crime e à violência, 39 identificações de adolescentes em conflito com a lei, 17 discursos de ódio ou preconceito e nove torturas psicológicas ou tratamentos desumanos ou degradantes.
A Andi verificou ainda que a média de violações de direitos cometidas nas narrativas de TV é maior que a do rádio (78 por programa na TV, contra 51 no rádio); que a maior parte dessas produções ;policialescas; é exibida no horário de almoço e no período da tarde; e que o programa Cidade Alerta, editado em São Paulo, se sobressai entre os demais, com o maior número de registros.
Os programas monitorados foram DF Alerta, Balanço Geral, Cidade 190, Rota 22, Na Rota do Crime, Na Mira, Brasil Urgente, Sociedade Contra o Crime, SOS Cardinot, Ronda Geral, Folha Alerta, Patrulha da Cidade, Metendo Bronca, Cidade Alerta, O Pulo do Gato, TV Verdade, Itatiaia Patrulha, Tribuna do Massa, Picarelli, O Povo na TV e Boca do Povo.
Sobre o perfil das pessoas, vítimas ou suspeitas de cometerem delitos, expostos nos programas, o monitoramento da Andi mostrou que a maioria das narrativas viola direitos de pessoas negras, ;não por acaso, as que menor poder econômico e simbólico têm no Brasil;. Entre os suspeitos, 1.068 que tiveram direitos violados são negros, contra 399 brancos e 2 indígenas. Entre as vítimas de ocorrências delituosas, 80 dos que tiveram direitos violados são negros e 23 brancos.
Para Suzana, esses programas se reproduzem a partir de ;um falso argumento, em busca de uma legitimidade, de que atendem às classes menos privilegiadas socioeconômicas e étnico-raciais;. ;São os direitos exatamente dessas pessoas que são desrespeitados. Esses argumentos não se sustentam ética ou tecnicamente.;
Mapa da violência da mídia
A coordenadora do guia explicou que é preciso chamar atenção da sociedade para o poder formativo desse tipo de programa. ;No campo da comunicação de massa, ele é hoje o foco de produção do sentido da realidade social. Não só atinge aquelas pessoas, mas produzem mentalidade favorável à violência;, acrescentou.
Segundo ela, o próximo projeto da Andi é construir uma espécie de mapa da violência da mídia, como ela impacta a violência física. ;A sociedade brasileira pouco se atenta ao campo simbólico na construção desse quadro de violência física. O impacto negativo existe. O campo da comunicação de massa pode não ser a causa de violência física, mas é um vetor significativo dessa doença social;, disse.
A referência de Suzana é sobre o Mapa da Violência, um trabalho desenvolvido pelo pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), que, desde 1998, já divulgou 25 estudos sobre os padrões da violência no Brasil.
Controle e regulação
Para a Andi, entre os fatores que contribuem para operação desse modelo de comunicação estão os desajustes do sistema de regulação, que ;se resumem a um controle institucional formal, de pouca efetividade, a ausência de monitoramento sistemático dos programas, e os baixos valores de multas, quando eventualmente aplicadas, em contraponto aos altos lucros auferidos com a exibição dos programas;.
Conforme Suzana, é preciso que a sociedade brasileira disponha de mecanismos de pressão para que haja uma efetiva fiscalização da lei. ;É preciso um marco regulatório mais consistente, mas se o que temos hoje fosse cumprido já seria excelente, em termos de respeito na comunicação de massa. ;O problema é a ausência real de fiscalização e acompanhamento desses programas. O Estado brasileiro precisa tomar pé dessa situação;, acrescentou.
Os dois primeiros volumes do guia, lançados em 2015, trazem artigos de estudiosos e a metodologia aplicada para identificar violações de direitos no campo da comunicação de massa. As três publicações estão disponíveis na página da Andi na internet.
A edição dos guias integra uma ação mais ampla da Andi, articulada em torno do Programa de Monitoramento de Violações de Direitos na Mídia Brasileira e desenvolvida em parceria com o Ministério Público Federal e organizações da sociedade civil, como a Artigo 19 e o Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social.