João Ubaldo Ribeiro era de dias. Quando estava bem, adorava uma conversa. Piadista sagaz, contador de histórias, dono de uma erudição impressionante e nada empavonado, conseguia arrancar risadas, sorrisos e expressões de admiração com uma facilidade invejável. Frasista de primeira, podia comentar qualquer coisa com a propriedade que somente os detentores de uma cultura universal conseguem. Nunca escorregava no banal e, mesmo no humor, falava sério. Seriíssimo. Ubaldo deu vários sustos à família ; o alcoolismo derrubou o escritor inúmeras vezes, e o cigarro trouxe uma insuficiência respiratória ;, mas o da madrugada de ontem levou-o para sempre.
[SAIBAMAIS]
O autor de Viva o povo brasileiro e Sargento Getúlio, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), morreu em consequência de uma embolia pulmonar. A filha Francisca e a mulher, Berenice, tentaram socorrê-lo quando ele se queixou de falta de ar, mas os médicos não chegaram a tempo. João Ubaldo Ribeiro morreu, aos 73 anos, em casa, no apartamento do Leblon, no qual morava havia mais de três décadas e que um dia pertenceu a Caetano Veloso.
Reverência
A vida do escritor começa na Bahia, em janeiro de 1941, na ilha de Itaparica, mas se espalha pelo mundo com uma velocidade e uma intensidade que fizeram de Ubaldo o autor contemporâneo brasileiro mais traduzido em outros idiomas. Filho de um professor que também era político, ele morou em Sergipe na infância e na Alemanha na idade adulta, país no qual foi acolhido com reverência e ao qual se sentia especialmente ligado. Em Um brasileiro em Berlim, ele fala sobre esse laço e sobre identidade em crônicas escritas para o jornal Frankfurter Rundschau, durante o ano que passou na capital alemã a convite do Instituto Alemão de Intercâmbio. Quase todos os livros do escritor foram traduzidos para o alemão, e ele mesmo traduziu Viva o povo brasileiro para o inglês.
Ocupante da cadeira 34 da ABL, vencedor do Prêmio Camões em 2008 e de dois Jabutis por Sargento Getúlio (1972) e Viva o povo Brasileiro (1984), Ubaldo formou-se em direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), fez mestrado em administração pública e ciência política na Universidade da Califórnia do Sul (EUA) e deu aulas na UFBA, mas nunca advogou.
Publicou Sargento Getúlio, considerado um marco da literatura moderna, aos 30 anos, e Viva o povo brasileiro veio depois de um desafio do amigo e editor Pedro Paulo Sena Madureira, da Nova Fronteira. Ele dizia que brasileiro só queria ler livro curto, de ;ponte aérea;. Ubaldo fez então sua versão da história do povo brasileiro, um romance com mais de 600 páginas que narra os efeitos da passagem dos holandeses pela ilha de Itaparica no século 17. É um épico de proporções hilárias, como o gosto pelo canibalismo instalado no caboclo Capiroba e a perspicácia do Nego Leléu, que transita aqui e ali com uma habilidade que os holandeses invejariam. Para o amigo Madureira, Ubaldo entregou os originais com 6,7kg.
Rabiscos
O primeiro livro, no entanto, veio bem antes. Aos 27 anos, entre a máquina de escrever do Jornal da Bahia, no qual trabalhou ainda adolescente, e os rabiscos nas folhas de papel na casa dos pais, em Salvador, ele deu vida a Setembro não tem sentido e ao boêmio Tristão, que adorava atrapalhar as comemorações da Semana da Pátria.
No último livro, O albatroz azul, publicado em 2009, o escritor transita por temas como morte e ressurreição de modo destemido e com a mesma ousadia que o fez escrever livros como A casa dos budas ditosos e o próprio Viva o povo brasileiro. Incesto, bigamia e decadência marcam a história de Tertuliano, que precisa se safar de uma confusão armada pelo pai. Nos últimos meses, de acordo com a secretária do escritor, Valéria dos Santos, João Ubaldo trabalhava em um novo romance. Para se dedicar ao livro, reduziu o consumo diário de cigarros.
Sem medo de ser politicamente incorreto, João Ubaldo Ribeiro falou da morte e da descrença na humanidade durante a Festa Literária de Paraty (Flip), em 2008. Ele não era exatamente um otimista, mas sabia gargalhar e, com a voz grossa de barítono e a camisa para fora da calça, era a imagem do contraste ao fazer a ponte entre a o universo popular e a extrema erudição. Um brasileiro.