Passados mais de 50 anos da publicação do primeiro livro da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a presença da mulher negra na literatura, seja como autora ou como personagem, ainda é pequena e mostra uma homogeneidade racial que não corresponde à realidade da sociedade brasileira.
A pesquisadora Andressa Marques, mestra em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB), contabiliza apenas seis romancistas negras contemporâneas. Uma pesquisa da mesma universidade, coordenada pela professora Regina Dalcastagn;, com base na análise de 258 livros publicados no período de 1990 a 2004, registra a presença de 79,8% de personagens brancas entre os de maior importância.
O Censo Demográfico 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) aponta que pouco mais de 50% da população do país se declarou parda ou negra. ;À mulher negra se espera que ela faça muita coisa: cozinhe, dance, cuide de uma casa. Há todo um processo histórico que colocou essa mulher em determinadas posições.
Não se acredita muito na competência dela para escrever;, avalia a escritora afro-brasileira Conceição Evaristo, doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Para Andressa Marques, essa ausência tem um impacto importante na formação da sociedade brasileira, pois a literatura, ao dar voz apenas a determinados segmentos, constrói uma forma distorcida das representações sociais.
;O sistema educacional, por exemplo, vai recorrer à literatura como um aporte de formação cidadã. Ao passo que a gente não se vê representado nessa literatura, corremos o risco de ter uma representação uníssona da sociedade. É como se a gente estivesse em um país que fosse totalmente homogêneo;, declarou. Nesse sentido, Conceição acredita que esta é uma das principais contribuições de Carolina à literatura brasileira.
;É a possibilidade ou a necessidade de ter vozes mais diferenciadas no sistema literário brasileiro;, apontou. Para ela, não há dúvida de que a produção de Carolina tenha valor literário. ;Ela marca essa possibilidade de grupos trabalharem com a língua portuguesa conforme a sua própria competência. A literatura brasileira é essa possibilidade de pessoas de diversos estratos sociais utilizarem a língua de acordo com a sua experiência;, destacou.
Inspirada pela obra de Carolina de Jesus, Conceição Evaristo é uma das romancistas negras de maior destaque no campo literário brasileiro atual. Autora de livros como Ponciá Vicêncio e Becos da Memória, ela conta que o primeiro contato com o texto de Carolina revelou um sentimento de aproximação de realidades.
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;Naquele momento, eu também morava em uma grande favela de Belo Horizonte. Minha família toda se interessou. A gente lia como se fosse também personagem daquele diário e isso nos marcou muito;, relembra. A influência na família foi tanta que a mãe de Conceição passou a escrever um diário depois de conhecer a obra de Carolina. ;Ela escreve muito marcada por saber que outra mulher, igual a ela, favelada, tinha feito um diário;, conta.
A autora guarda esse testemunho como um objeto de recordação familiar, mas a produção dela também é alimentada por esse registro, como ocorre em Becos da Memória. Conceição lembra que havia um ambiente social receptivo à produção de Carolina. ;O que ela estava dizendo, era aquilo que nós [dos movimentos populares] também de certa forma falávamos. Nós éramos a Carolina;, relata ela, que era atuante no movimento operário e trabalhou como doméstica quando estudava.
;Ao simbolizar a voz do povo, ela trazia para a classe média, para os intelectuais, para a militância católica, a voz do povo que esses grupos queriam, pretensamente, ouvir;, avaliou. Para a professora, o mesmo ambiente que tornou a palavra de Carolina necessária o deixou cair no esquecimento. ;Ela não era aquela que falava da luta de classe, ela falava de uma forma muito particular, a partir da experiência. Não era um discurso que criticava, por exemplo, as estruturas econômicas.
Tem um texto que diz que em um ano ela foi tudo e no outro ano ela foi carta fora do baralho;, apontou. Conceição avalia que a absorção do discurso de Carolina era uma forma também de a classe média, a intelectualidade e a classe política expurgarem uma culpa latente pela existência dessa condição miserável ao qual muitos estavam sujeitos.