O país vive um levante. E não é por R$ 0,20. É por direitos. Na última segunda-feira, a nova cara do Brasil tomou as ruas e subiu no teto do Congresso. Cobrou tarifa zero, sim. Mas também escolas e hospitais com padrão de país desenvolvido. Naquela noite histórica, uma adolescente de 16 anos levou ao coração do Planalto Central um aviso fluorescente que amarrava o turbilhão de reivindicações. ;Desculpe o transtorno, estamos mudando o país.; Como se diz nas redes sociais, o ;gigante acordou;. O caldeirão de frustrações e reivindicações negligenciadas transbordou. E aquele 17 de junho mostrou que a onda é muito maior do que se imaginava.
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;Uma das raízes de tudo isso é uma crítica muito forte ao sistema político. O que a gente está vivendo é esse acumulado. É como um copo que você vai enchendo. Chega uma hora que ele extravasa. Houve uma série de manifestações que não foram bem-sucedidas ; os movimentos ;fora Renan; e ;fora Feliciano; são alguns deles. O povo está no limite;, disse o pesquisador Marcello Barra, do Núcleo de Estudos em Políticas Sociais do Departamento de Ciências Sociais da Universidade de Brasília (UnB).
O movimento foi se desenhando aos poucos. Na quinta-feira da semana passada, os manifestantes que tomaram as ruas de São Paulo foram reprimidos pela polícia. Aquele dia marcou uma ruptura e fortaleceu ainda mais as manifestações. Cidades como Brasília, onde as tarifas do transporte público não estavam na agenda do dia, viraram palco de protestos em apoio às capitais onde a população já tinha ido às ruas e em oposição aos elevados gastos com obras para a Copa do Mundo de 2014. A pauta rapidamente se ampliou. Luta contra a corrupção, livre orientação sexual, respeito aos direitos humanos, fim do voto secreto, liberdade de expressão. Em última instância, democracia. De verdade.
Em uma tentativa de explicar o que de tão complexo demanda mais perguntas que respostas, Marcello Barra compara o momento atual às Diretas Já. Na época, diz, tentava-se derrubar uma ditadura e estabelecer um regime democrático. Agora, o movimento multitudinário que tomou as ruas mostra que o direito ao voto não é suficiente. ;Na democracia formal, você vota de quatro em quatro anos. Na real, as pessoas não só colocam os políticos no poder, como tiram. E definem como querem ver os impostos pagos ; que não são nada mais que dias de trabalho ; sendo aplicados;, afirmou Barra. No movimento a que se assiste quase diariamente, assim como na tal democracia real, disse, as lideranças não vêm a priori. ;Elas serão resultado, consequência do processo.;
Insatisfação
;O lado mais positivo de tudo que está acontecendo é a participação massiva dos jovens que saem às ruas nas grandes cidades e tentam intervir nas políticas públicas;, disse o professor de ciência política Lúcio Flávio de Almeida, da PUC de São Paulo. ;O principal legado positivo é a sensação de recuperação da coragem e da determinação de ir para a rua manifestar sua contrariedade. O legado é a prática da cidadania. Agora é preciso lutar para que isso não seja desperdiçado;, disse a socióloga e diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania na Universidade Cândido Mendes, Julita Lemgruber.
Difícil, disse ela, analisar um episódio histórico enquanto ele ocorre. ;É um momento muito interessante. Um movimento com uma série de reivindicações, um movimento ainda um pouco difuso que a gente espera que possa ter um resultado prático. Claramente, o aumento das passagens de ônibus foi o gatilho para o extravasamento de uma insatisfação muito grande com a política, com as autoridades e com as condições precárias dos serviços públicos. A dificuldade hoje é tentar antever os desdobramentos;, diz.
A crise de representatividade ; que ajuda a explicar a ausência de lideranças claras e a aparente horizontalidade do movimento ; e o número expressivo de pleitos em um único movimento dão tom de ineditismo aos protestos. Mas também preocupam. ;Essa manifestação toda não tem uma liderança clara e uma definição de pauta clara. O risco de isso se perder é muito grande. É o perigo que estamos correndo, de que esse movimento maravilhoso possa se perder;, opinou Julita Lemgruber. Amanhã tem mais manifestações em todo o país. É dia nacional de lutas.
"Um momento muito interessante. Um movimento ainda um pouco difuso que a gente espera que possa ter um resultado prático"
Julita Lemgruber, socióloga
Por que o Brasil protesta?
Transporte público
As mobilizações tentam barrar os reajustes das passagens e clamam por mais qualidade e pela implementação da tarifa zero
Copa do Mundo
Os elevados gastos com a realização de grandes eventos esportivos têm causado indignação. Pede-se a aplicação desses recursos em áreas como saúde e educação
PEC 37
Os manifestantes protestam contra a proposta de emenda à Constituição que tira poderes de investigação do Ministério Público
Reforma política
A sociedade quer destravar a discussão, engavetada há mais de 20 anos pelo Congresso
Aborto
Ao estabelecer que o nascituro existe a partir da concepção e não do nascimento, o estatuto em discussão no Congresso emperra a discussão sobre o aborto e encontra resistência
Livre orientação sexual
Cresce o movimento contra o projeto de cura gay, aprovado ontem na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados
Memória
Os movimentos lutam pelo direto à memória, à verdade, à justiça e contra os crimes da ditadura militar
Voto secreto
Com o slogan de ;voto secreto não, quero ver a cara do ladrão;, pede-se que todas as decisões sejam públicas no Congresso e nas demais casas legislativas do país
Direitos humanos
Atos de violência e repressão desproporcional em conflitos na cidade, no campo e contra povos indígenas mobilizam a população
Corrupção
Mais uma vez, o povo pede mais transparência e o combate aos malfeitos.