Pessoas de referência da comunidade, que atuaram ou ainda atuam em balcões de farmácias, passam instruções de como usar o medicamento muitas vezes em pedaços de papel improvisados e garantem que tudo dará certo representam uma face dos vendedores de abortivos no país. Elas também assediam sexualmente suas ;clientes;, recusam-se a socorrê-las quando enfrentam complicações e as desestimulam a procurar ajuda médica. Os dados, levantados pela pesquisa Quando o aborto se aproxima do tráfico, realizada pela Universidade de Brasília (UnB) e pela Anis ; Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, revelam o perfil de um agente importante na prática clandestina de interrupção da gravidez.
As informações vêm da análise minuciosa de 10 processos judiciais e inquéritos policiais contra mulheres e vendedores denunciados pelo Ministério Público do Distrito Federal. Devido à metodologia aplicada, o estudo ganhou aval da revista científica Ciência & Saúde Coletiva, onde será publicado. Somente um caso, entre as peças pesquisadas, refere-se ao fornecedor ou traficante. O restante alcançou no máximo o ;vendedor de Cytotec;, como o intermediário geralmente é conhecido pela comunidade. A análise mostrou também que o vendedor quase sempre comercializa outros produtos proibidos, como estimulantes sexuais, anabolizantes e drogas emagrecedoras.
Em um único caso, foram encontradas armas e munições no depósito do vendedor do abortivo. Para a Polícia Federal (PF), o dado não é surpreendente. ;Sabemos que a maior parte desses medicamentos proibidos no Brasil vem do Paraguai e entra por portos e aeroportos com outras coisas, como drogas, armas e munições;, ressalta Josemauro Pinto Nunes, da coordenação da Unidade de Repressão ao Contrabando e Descaminho da PF. As mulas (pessoas que trazem do país vizinho os objetos contrabandeados), explica o delegado, são financiadas por redes criminosas. ;A gente sabe disso porque, quando são pegos na fronteira e chegam à delegacia, já têm um advogado lá, à espera.;
Além do risco inerente ao contato com a clandestinidade, ao comprarem o abortivo sem procedência, muitas vezes vendido em envelopes, a preço 30 vezes superior ao valor de mercado em países onde são legais, as mulheres cujas histórias foram analisadas na pesquisa da UnB/Anis mostram outras vulnerabilidades.
Em um dos casos estudados, onde constam até escutas telefônicas, o vendedor insinua levar a mulher a um motel, ;dar um trato; nela e depois inserir os comprimidos com o próprio pênis. Foi também registrada a coação do intermediário para que a mulher, sangrando sem parar, não procurasse socorro. O marido, em depoimento, repetiu as palavras do vendedor: ;(Ele disse que) era assim mesmo (;), que não voltaria naquele momento, pois estava ocupado;. A esposa morreu em menos de uma semana.