Jornal Correio Braziliense

Brasil

Daqui a 40 anos, proporção de idosos na população será três vezes maior

Série de reportagens do Correio mostra os principais problemas sofridos por essa faixa etária: abandono, violência, exploração e exclusão

Com uma das mãos apoiadas na bengala, Heleno Mendes da Silva usa a outra para se certificar de que as contas estão certas. Segundos depois, o semblante é de admiração. Ele custa a acreditar que já viveu tanto. Afinal, para quem nasceu em 1922, quando as pessoas morriam em média aos 34 anos, beirar os 89 pode ser considerado surpreendente. Mas o senhor de olhos avermelhados e cabelos brancos representa apenas o início da mudança demográfica radical pela qual o Brasil passa. Uma combinação de fatores ; menos filhos por mulher, evolução da medicina e maior acesso a serviços básicos ; começa a provocar verdadeiro boom. A população idosa no país cresce de forma vertiginosa, de acordo com projeções oficiais.

Se hoje, para cada 100 crianças de zero a 14 anos há 24 idosos, em 2050 serão 172. Motivo justo de comemoração, a longevidade conquistada também traz desafios imensos para uma nação onde, em quatro décadas, 30% dos moradores terão mais de 60, principalmente se os 10% nessa faixa etária atualmente já padecem vendo seus direitos desrespeitados. Abandono, violência, exploração e exclusão são quatro facetas extremamente graves do envelhecimento que o Correio aborda, a partir de hoje, na série Retratos de um país que não sabe envelhecer.
[SAIBAMAIS]
O desrespeito vem de todos os lados. É o Estado que não consegue atender as necessidades de saúde do idoso, a sociedade que lhe nega um simples assento dentro do ônibus, a família que o repele da convivência. ;Problemas da atualidade, como colapso dos hospitais e a violência dentro de casa, ganham uma dimensão gigantesca diante de um ser tão vulnerável;, adverte o geriatra Renato Maia, professor da Universidade de Brasília (UnB) e referência no tema do envelhecimento. O médico é um dos muitos especialistas que consideram o Estatuto do Idoso, em vigor desde 2003, instrumento de poucos resultados. ;Tirando a vaga de estacionamento e a preferência na fila, o resto é um monte de palavras bonitas;, resume.

Distantes das famílias

Um silêncio incômodo marca as instituições de longa permanência para idosos, mais conhecidas por asilos. Dentro de uma delas, localizada no Distrito Federal, onde a reportagem passou uma semana, a voz de Heleno Mendes da Silva pouco altera o som ambiente, de tão baixinha que é. Mas ele se considera um felizardo. Afinal, faz parte de uma minoria entre os cerca de 60 moradores do lar que anda, fala e tem lucidez. Magro e sempre com a bengala ao lado, Heleno traçou um dos caminhos mais dolorosos, porém comum, para chegar à instituição, em 2009. Foi levado depois de uma denúncia de maus-tratos e negligência, feita pela comunidade onde morava. Embora nunca tenha imaginado sair de sua casa para viver em um asilo, sente-se melhor ali do que na companhia dos filhos. ;Pelo menos aqui zelam por mim;, diz o senhor de 88 anos.

Dos quatro filhos, só dois fazem alguma visita ao pai. Certa vez, quando levaram Heleno para passar uns dias em casa, o senhor ligou para a instituição, pedindo para voltar, incomodado com as brigas entre os parentes. A memória de Heleno começa a falhar. Às vezes, precisa parar, pensar, até dizer que não se lembra da resposta para determinado questionamento. De uma coisa, porém, ele sempre se recorda: a ausência da única filha. ;Nem pergunto mais por ela quando alguém aparece aqui. Queria que eles me procurassem e não eu procurar por eles;, diz, com um tom de ressentimento. Os ;esquecimentos; esporádicos têm incomodado o paraibano nascido em Juazeirinho há 88 anos. ;Trabalhei desde criança na roça, mas agora estou sentindo que as forças estão indo embora;, lamenta o idoso, que é viúvo.

Apesar dos lapsos de memória, Heleno faz as atividades da vida diária sozinho ; higiene pessoal, come, caminha. Privilégio de uma minoria dentro das 3.548 instituições de idosos no Brasil, onde 66% são dependentes ou semidependentes, segundo estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). ;Em vez de servirem para convivência, esses locais estão se tornando centros de doentes crônicos. E isso devido à falta de um atendimento decente de saúde;, critica o geriatra Renato Maia. O quadro, segundo ele, tende a piorar, já que com a expectativa de vida para além dos 73 anos, aumenta também o risco de doenças incapacitantes, como o Alzheimer. Pacientes dessas patologias já são presença constante nos asilos, onde a morte também é frequente. Em uma semana dentro da instituição visitada, o Correio presenciou a ida de dois idosos ao hospital ; apenas um voltou.

No caso de Adão Felizardo de Souza, filho que vingou depois de seis irmãos mortos e, por isso, recebeu da mãe o nome da primeira criação humana de Deus, foi um problema mental que o levou ao lar para idosos. Depois que a mãe morreu, Adão ainda ficou seis anos sob os cuidados da irmã mais nova. Mas Maria Eunice, hoje com 56 anos e problemas de saúde, não conseguiu se dedicar exclusivamente a ele, como é necessário. Nem por isso deixou de ser presente na vida de Adão. Vai ao lar uma vez por semana e, às vezes, leva-o para passar uns dias na casa dela. O último encontro prolongado foi em janeiro. Entusiasmado como uma criança, Adão conta o que fez. ;Tirei leite da vaca, pesquei, comi carne de coelho;, enumera. Nascido em Monte Alegre, Goiás, o inquieto fã de Martinho da Vila nunca se casou ou teve filhos. Para ele, a família se resume, além da irmã, aos companheiros da instituição. ;Gosto do pessoal daqui;, diz o senhor de 65 anos.