Brasil

Tese de defesa da honra para crimes passionais ainda encontra apoio

Mas alcunha de "passional", às vezes, esconde um assassino frio

postado em 09/01/2011 08:15
Fosse a justificativa de Otelo ; personagem de Shakespeare que, suspeitando de traição, asfixiou Desdêmona até a morte ; apresentada hoje nos tribunais do Brasil, é possível que encontrasse respaldo entre os sete jurados que integram os conselhos de sentença. Por um lado, os operadores do direito afirmam categoricamente que não há espaço, em pleno século 21, para a tese jurídica do ;lavar a honra com sangue;, diante de um adultério imaginado ou consumado. Mas, por outro, também são unânimes em destacar que principalmente em locais mais distantes dos grandes centros, por tradição ou cultura, a ideia tem adeptos. ;Como o motivo já é passional, os argumentos acabam enveredando para a emoção. O mais comum, então, é a defesa demonizar a vítima, principalmente se mulher, para levar os jurados ao sentimento machista;, critica Norberto Jóia, promotor de Justiça em São Paulo.


Doca Street: divisor de águas
Com 17 anos de profissão e mais de 300 júris feitos, o defensor público do Distrito Federal Fernando Calmon não discorda da existência do machismo, mas considera a discussão sobre a vida pregressa dos envolvidos necessária nesses casos. ;Quando falamos de crime, falamos de conduta. E conduta é humana. A gente precisa criar o histórico dos personagens e analisar as circunstâncias do fato;, diz. Com base em tais informações, por exemplo, Calmon conseguiu a absolvição de uma mulher que matou o marido com um golpe de machado, quando ele chegava em casa. ;Mostramos, com base em provas, que ela apanhava diuturnamente e não tinha outra opção;, completa.

Divergências à parte, ninguém discorda que, embora decisões duvidosas ainda tenham espaço no Judiciário, a tendência é de endurecimento com homicidas que alegam ter matado por amor, paixão, ciúme ou qualquer outro sentimento. Casos rumorosos, que, por envolverem famílias ricas ou pessoas públicas mexeram com a sociedade brasileira, contribuíram decisivamente para a mudança de mentalidade da Justiça.

Um divisor de águas, sem dúvida, foi o assassinato de Ângela Diniz pelo namorado Doca Street. Na ocasião, feministas picharam muros com o bordão histórico ;quem ama não mata;. Curiosamente, o caso mais antigo bem documentado no Brasil, de 1873, subverte a lógica preponderante na época. Embora rico, desembargador, estimado na sociedade, Pontes Visgueiro, que assassinou uma prostituta por querer dela fidelidade, acabou condenado à prisão perpétua, então vigente.

Para Luiza Nagib Eluf, procuradora de Justiça em São Paulo e estudiosa dos crimes passionais, Pontes Visgueiro representa bem o modus operandi do atual homicida passional ; considerando que mais de 90% deles são homens. ;É um assassino que age, na verdade, por vingança. Então ele se prepara para matar, elabora a ação. Pontes Visgueiro passou quase dois meses planejando, comprou caixão, atraiu a vítima até sua casa. Pimenta Neves, o jornalista, também tramou quando pegou a ex-namorada desprevenida no haras;, ressalta Luiza. A diferença, por mais absurda que pareça, é que Pontes Visgueiro, no século 17, passou o resto de seus dias preso e trabalhando. Pimenta Neves, já condenado, continua solto. Estão para ser julgados os acusados pela morte de Eliza Samudio, Eloá Pimentel e Mércia Nagashima, para citar casos mais emblemáticos.

Redução
Como a passionalidade não é um tipo penal, previsto na letra fria da lei, o próprio conceito dessa espécie de crime diverge entre especialistas do direito. Convencionou-se, porém, chamar de passional o delito quando havia uma relação afetiva (sexual ou não) entre autor e vítima. O que caracteriza os julgamentos de homicídio passional é a alegação de que ele foi praticado sob domínio de violenta emoção. Se os jurados assim entenderem, o réu pode ter uma redução considerável da pena ; de até um terço.

Vítimas
A cada duas horas, uma mulher é assassinada no Brasil, quase sempre pelo marido, namorado, ex-companheiro ou demais parentes. Os dados, extraídos do Mapa da Violência 2010, mostram ainda que 40% das vítimas têm entre 18 e 30 anos. Em 65% dos casos, os filhos assistem à agressão e 15% desses também são agredidos.

O domínio do mal
Se quase tudo no direito é interpretação, isso fica amplificado nos julgamentos por homicídio passional. ;São casos que dão muita margem para o teatral, porque os jurados, naturalmente, se envolvem, se colocam de fato no lugar da vítima e do réu;, diz Leandra Paronuto, defensora pública no DF. Até o que muitas vezes parece ideal para defender acaba dando margem à acusação, e vice-versa. Fernando Calmon, defensor no DF, acredita, por exemplo, que a violência exacerbada nos crimes passionais denota que o autor agiu sob domínio de violenta emoção ; o que atenua a pena com redução de até um terço. ;Qualquer covarde dá um tiro. Uma pessoa fria faz um corte no local certo. Só o desesperado mata com 80 facadas, até descarregar toda a adrenalina;, sustenta.

Do lado da acusação, o promotor de Justiça do Distrito Federal, Maurício Miranda, destaca que tudo depende das circunstâncias do crime e também de fatores anteriores a ele. ;Dar 80 facadas pode significar para os jurados uma crueldade muito grande, especialmente se o réu tem um histórico de violência;, alfineta Miranda. Outro aspecto muito comum em julgamentos do tipo é a apresentação do assassino como ocasional. ;Essa informação de ter sido um fato isolado na vida dele, de que ele não é um criminoso por tradição, quase sempre aparece;, diz o desembargador José Nepomuceno, mais de 40 anos de profissão e atualmente vice-presidente da Escola Nacional da Magistratura.

Para Nepomuceno, o problema é mais frequente nos estratos sociais pouco privilegiados. ;Nos ambientes mais aculturados, o crime passional é menor, em virtude de haver mais tolerância;, destaca. A defensora Leandra Paronuto concorda. ;Entre pessoas sem muita escolaridade, às vezes falta a capacidade de resolver seus problemas por meio do diálogo;, explica. Norberto Jóia, promotor paulista, é um dos que discordam. ;O homicida passional é um criminoso democrático em termos sociais, embora seja verdade que nas comunidades carentes há um ambiente propício para a violência em geral;, diz.

Um ponto, ao menos, é pacífico: a invalidade do argumento de defesa da honra. ;A honra é um bem personalíssimo, que não pode ser flagelado por outro. Um ato de infidelidade só pode causar danos à honra do próprio infiel;, ensina Maria José Miranda, promotora de Justiça no DF. (RM)

Casos rumorosos
Quando ocorrem em famílias ricas ou entre figuras públicas, os crimes passionais deixam toda a sociedade perplexa. Lembre-se de alguns casos famosos do noticiário policial brasileiro:

Rio de Janeiro (RJ), 1909 Euclides da Cunha, Anna e Dilermando de Assis
;Vim para matar ou morrer;, bradou o professor de lógica e autor do livro Os Sertões, Euclides da Cunha, ao tentar matar o tenente do Exército Dilermando de Assis, amante de sua mulher, Anna da Cunha. Na briga, foi Euclides quem acabou morto por arma de fogo. Dilermando conseguiu absolvição na Justiça por ter agido em legítima defesa.

Búzios (RJ), 1976 Doca Street e Ângela Diniz
;Matei por amor;, disse o então playboy Doca Street antes de entrar no julgamento por ter atirado quatro vezes contra a namorada, Ângela Diniz, conhecida na alta sociedade mineira pela beleza estonteante, depois do término do relacionamento. Foi absolvido no primeiro júri, com apoio popular. No segundo, depois de um recurso, quando o movimento feminista cunhou a frase ;quem ama não mata;, pegou 15 anos de reclusão.

Rio de Janeiro (RJ), 1980 Dorinha Duval e Paulo Sérgio Garcia Alcântara
;O amor e o ódio, quando muito intensos, chegam a se confundir;, afirmou Técio Lins e Silva, advogado de defesa de Dorinha Duval, atriz da Rede Globo que matou o companheiro, durante uma discussão, com três tiros. Mas ele não convenceu. A atriz, inocentada num primeiro júri, foi condenada a seis anos de reclusão.

São Paulo (SP), 1981 Lindomar Castilho e Eliane de Grammont
;Quem ama não mata;, finalizou o criminalista Márcio Thomaz Bastos, ao acusar Lindomar Castilho por matar com cinco tiros a ex-mulher, Eliane de Grammont, enquanto ela cantava em um bar de São Paulo. A Praça da Sé transformou-se em área de conflito, com movimentos pró e contra o cantor de bolero durante o julgamento. Lindomar foi condenado a 12 anos e dois meses.

Ibiúna (SP), 2000 Antônio Marcos Pimenta Neves e Sandra Florentino Gomide
;Eu idolatrava o chão que ela pisava;, disse o jornalista Pimenta Neves, em seu interrogatório, ao confessar que matou, com dois tiros, a ex-namorada Sandra Gomide. A moça, já separada de Pimenta, chegou a registrar uma ocorrência contra o ex-companheiro. Ele foi condenado a 18 anos, mas aguarda o julgamento de recursos no Supremo Tribunal Federal em liberdade.

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