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Brasil

Doação de órgãos bate recorde no primeiro semestre, com DF na 3ª posição no país

Homem, 33 anos, que sofria de um tumor no cérebro. São as únicas informações que Maria Pia Barbosa Albuquerque tem do dono do coração que hoje bate em seu peito e atual destinatário das orações diárias que a mineira de Ibiraci faz. Para Antonio Rodrigues da Silva, a redenção veio de uma criança de oito anos bem encorpada a ponto de ter os rins direcionados a adultos. O cearense de Ibiapina nada mais sabe sobre o menino ou menina que o livrou das três sessões semanais de hemodiálise e da angústia pela espera de salvação. Apesar do desconhecimento sobre o doador e familiares, um sentimento muito especial liga Maria e Antonio aos seus heróis anônimos: a gratidão. A boa notícia é que o gesto de solidariedade bateu recorde no primeiro semestre deste ano no Brasil. Foram 963 doadores de múltiplos órgãos, 145 a mais do que no mesmo período de 2009, resultando em 2.367 transplantes. Sem contar nas 6.722 cirurgias de córneas, um tecido do corpo humano.

;Atingimos uma taxa acima do previsto, de 10,06 doadores por um milhão de pessoas. Entendemos esse aumento como uma conjunção de fatores, entre eles a conscientização das pessoas;, afirma Alberto Beltrame, secretário de atenção à saúde do Ministério da Saúde. Embora o Brasil tenha o maior programa público de transplantes do mundo, e taxas de doações, em alguns estados próximas à de países europeus, ainda há gargalos significativos. Para se ter uma ideia, enquanto São Paulo lidera, com 22,76 doadores por um milhão de pessoas, Mato Grosso tem índice de 1,33 e Pará, de 0,81. Amazonas e Rondônia nem realizam transplantes com órgãos de pessoas falecidas em seus sistemas de saúde. O Distrito Federal se destacou, na terceira colocação, com taxa de 16,88.

Pessoas como Cleonice Cesário dos Santos ajudam a aumentar os índices da solidariedade. Em maio, a mulher, moradora de um assentamento de reforma agrária em Planaltina de Goiás e estudante do curso de licenciatura em educação do campo na Universidade de Brasília (UnB), perdeu o filho caçula. Mateus Vieira dos Santos, 9 anos, foi atropelado na BR-230, que corta o loteamento onde a família reside, quando voltava de um campo de futebol para casa. No hospital, Cleonice soube da morte encefálica do garoto e da possibilidade de doar os órgãos. ;Eu e o pai dele já tínhamos conversado sobre isso, mas sempre pensando na gente, nunca nos nossos filhos. Então, consultamos alguns parentes só para ter certeza de que ninguém tinha resistência em relação ao assunto;, explica a mineira de 32 anos.

Sem aproximação
Saber que ao menos as córneas de Mateus foram implantadas com sucesso traz um pouco de conforto a Cleonice. ;Penso que, apesar de ele não estar comigo, em casa, ele está na casa de uma outra pessoa, dando alegria para uma outra família, como ele sempre deu para a gente;, diz. Cleonice tem vontade de conhecer quem se beneficiou dos órgãos do filho, mas sabe que essas informações são sigilosas. ;Por uma questão de privacidade do receptor e também de preservação dos familiares do doador, nós não propiciamos esses encontros. Ao contrário, mantemos o anonimato. Há um consenso de que essa aproximação pode ser prejudicial do ponto de vista psicológico para ambas as partes;, explica Daniela Salomão, coordenadora da central de transplantes do DF.

Maria Pia, ao acordar do transplante de coração, sentiu uma sensação indescritível, mas não pode deixar de refletir sobre o doador. ;Acho que nem quando tive meus dois filhos vivi um dia tão feliz. Foi o maior presente que ganhei na vida;, conta a mulher, que praticamente não andava mais por conta da insuficiência respiratória. ;Foram 24 anos esperando a morte súbita. Ela não veio e eu renasci;, comemora. Antonio, que recebeu o rim esquerdo há cinco meses, mesmo em recuperação, comemora o fato de poder beber água. ;Agora, quanto mais, melhor.;

Falta informação

Medo de venda dos órgãos ou da aparência do corpo são mitos que atrapalham a captação de órgãos. Porém o que mais impede um aumento do número de doadores é a ausência de informação sobre a vontade do parente que morreu. ;Aí os familiares começam a discutir entre si, um diz que é contra, outro a favor;, conta Daniela Salomão, coordenadora da central de transplantes do DF. Expressar a própria decisão em vida é importante porque ajuda os familiares, os únicos que podem autorizar a retirada dos órgãos, a dizerem sim ou não.

Houve, no fim da década de 1990, a obrigatoriedade de imprimir, na carteira de identidade ou habilitação, a vontade sobre doar os órgãos. Devido ao alto número de documentos dizendo ;não;, chegando a 90% em alguns estados, o governo federal decidiu suspender a regra. O governo associou as negativas à falta de atendimento e informações adequadas nos Detrans e outros postos de atendimento sobre o que é a doação. Para Ben-Hur Ferraz Neto, presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, o caminho passa mesmo pela informação. ;Conscientizar a população é a melhor maneira de alcançarmos resultados ainda melhores;, diz.