Jornal Correio Braziliense

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Em rotina de tirar o fôlego, Jean Charles trabalhava 12h por dia

Ele trabalhava em uma luxuosa loja italiana, além de fazer um bico muito bem pago de carregar e descarregar móveis de um caminhão

Londres ; Quatro semanas depois de desembarcar para refazer o caminho de Jean Charles, a vida finalmente engataria de verdade. Com o documento de identidade português em mãos, aviso a cada pessoa que encontro pelo caminho que procuro emprego fixo, tenho os papéis, tudo legal. Em dois dias, duas oportunidades cairiam no meu colo.

No supermercado, meu lugar favorito é o corredor central entre as prateleiras. É lá que estão expostos os produtos que vencem nos próximos dias e, por isso, são vendidos por até um quarto do preço original. Eu pegava três pacotes de pão pelo preço de um, quando meu celular tocou. ;Você é o mineirinho que tá querendo emprego? Então vem pra cá, mas tem que ser agora;, me disse Glaisson Pinheiro, também mineiro, há 10 anos ganhando a vida em Londres.

Saí do supermercado e voltei para casa, não em um ônibus de dois andares, mas naqueles articulados estendidos, que estão sempre cheios porque as pessoas entram pela porta de trás e conseguem viajar sem pagar. Tomei um banho a jato e peguei o metrô até South Kensington, ao sul de Londres. Pela explicação do caminho, já podia imaginar a categoria do lugar: ;Vire à esquerda, caminhe até a loja da Channel. Você vai me encontrar quatro lojas à frente;, disse Glaisson. Ele me esperava na porta da Boffi, uma luxuosa loja italiana especializada em móveis de cozinha e banheiro.

;Você fala inglês?;, foi a primeira pergunta. ;Sim;, eu respondi. ;Menos mal;. Em seguida, ele disparou uma frase depois da outra, como se estivesse atrasado para um compromisso. ;Tô te dando isso aqui de mão beijada, tá tudo limpinho. Você tem quatro horas para cuidar, são cinco libras (R$ 15) por hora, mais transporte. Vinte e cinco (R$ 75), por dia, topa?; ;É claro;. Recebi as instruções do trabalho em apenas 15 minutos: recolher o lixo, separar os reciclados, aspirar o tapete, colocar copos, talheres e pratos na máquina, guardá-los no armário, limpar vidros e espelhos, passar um pano na privada, escovão na loja toda, usar o mop (espécie de pano molhado) no chão. Esta seria minha rotina pelos próximos 10 dias.

;Isso aqui é a Prada dos banheiros e cozinhas. Tá vendo aquela ali?;, ele disse, apontando para uma bancada de pedra com fogão e exaustor, cercada por armários com eletrodomésticos embutidos. ;Custa 200 mil libras (R$ 600 mil);. Num ato de confiança que me deixou espantado, Glaisson me entregou as chaves da loja e foi embora. Enquanto eu passava o pano nos espelhos, observava que sujava mais do que limpava. Passei a lavar os panos várias vezes ao dia. Problema resolvido. O espaço era tão grande, que resolvi dividi-lo em setores. Além de uma faxina geral, cada dia eu dava atenção especial a uma parte.

Meu horário de entrada no serviço era às 18h, quando a loja fechava para o público, e ia até as 22h. Com o tempo fui ganhando agilidade e voltava mais cedo para casa. Muitas vezes, a única companhia era o arquiteto italiano Francesco, que andava pela loja com um telefone sem fio nas mãos, falando em italiano até altas horas. ;Para cuidar de uma loja dessas, tenho que trabalhar muito;, ele justificava. Que nada. Logo saquei que Francesco esperava todos saírem para colocar a conversa em dia com sua mulher, que tinha acabado de ter um filho seu e vivia na Itália. Aparentemente, ele se esquecia que o italiano e o português são línguas, às vezes, muito parecidas.

Numa sexta-feira, o encontrei tomando um café expresso na cozinha, logo quando cheguei. ;Busy day (dia movimentado);, ele puxou conversa. ;Parece que as pessoas estão cuidando mais do seu dinheiro, não foi um dia fácil para vender. Para gastar 100 mil libras (R$ 300 mil) em uma cozinha, tem que ter muita certeza, não é?;, ele comentou. Pela quantidade de marcas de dedos gordurosos nas pias, nos espelhos e nas bancadas, comprovei que, de fato, tinha sido um dia agitado na loja. Será que rico também come frango frito com as mãos e não lava depois?

Não conheci direito os outros funcionários do escritório. Mas sentia-me próximo de quase todos pelas pistas que deixavam. Como era bonitinha a pequena Giulia, filha do Steven. Gerente da Boffi, ele trabalhava cercado por suas fotos e desenhos feitos com lápis de cor. Queria ter tido a chance de dizer obrigado a uma das duas recepcionistas, mexicana, que colocava todo o seu lixo em um saco plástico, facilitando (e muito) o meu trabalho. Só eu sabia que todos os dias, antes de ir embora, uma mesma mulher de lábios carnudos retocava a maquiagem e deixava-me um beijo de batom. Era o primeiro guardanapo no topo da lixeira do banheiro feminino, no fim da tarde, sempre.

O trabalho na loja me garantia o aluguel e boa parte das despesas com alimentação em Londres. Mas, para conseguir juntar dinheiro, precisa de mais. Numa manhã de quarta, Glaisson me ligou e perguntou se eu estava disponível para trabalhar. Sheldon, um inglês que ele conhecia, precisava de uma pessoa para ajudá-lo a descarregar um caminhão de móveis em um shopping de design de interiores. ;É trabalho bom, paga 10 libras (30) a hora. Duvido que você consiga coisa melhor;, ele me disse. Liguei para o Sheldon e combinei de encontrá-lo no shopping. Quando cheguei, ele já descarregava os móveis com mais três ajudantes. Típico inglês de classe média baixa, ele havia pedido demissão do emprego de motorista e alugado um caminhão para fazer entregas por conta própria.

;É sempre bom ter mais alguém por perto;, disse-me Sheldon, que por mais dois dias me convidaria para ajudá-lo a descarregar e carregar o caminhão com móveis. Ele pagava o dobro de Glaisson, mas o trabalho era bem mais pesado. ;Are you ok, buddy (está tudo bem, meu camarada)?;, ele me perguntava, de quando em quando. A bruteza do trabalho era inversamente proporcional à sua educação. Para transportar caixas e móveis, usávamos skates que tornavam a tarefa bem mais fácil. Naquela semana de sorte, somado o trabalho diário na loja e os três dias carregando móveis, eu tinha ganhado 340 libras (R$ 1.020). Para mim, Londres começava a se tornar a cidade mais incrível do planeta.

ENTENDA A SÉRIE
O Correio/Estado de Minas refez, em Londres, o caminho do mineiro Jean Charles, executado pela polícia inglesa há cinco anos, e desde quinta-feira publica uma série com a experiência do repórter durante 40 dias na cidade europeia. Ele vivenciou os riscos de uma vida na ilegalidade, sentiu o drama na busca por emprego, colheu histórias de sucesso e relatos de decepção. A cada dia, um capítulo da saga será publicado.

Assista a vídeo sobre o trabalho em Londres

LEIA AMANHÃ: Hora de voltar

Dinheiro vira pó

O resultado de anos de trabalho de dezenas de brasileiros em Londres virou pó no início deste ano. Eles foram vítimas de um golpe aplicado por Rogéria Neves, mineira de Santa Vitória, no Triângulo Mineiro, que desapareceu com cerca de 300 mil libras (R$ 900 mil) de imigrantes brasileiros. Há três anos moradora da cidade, Rogéria mantinha um negócio de transferência de dinheiro para o Brasil.

;Ela tinha o perfil de uma pessoa que você nunca imaginava ser capaz de aplicar um golpe: pouco mais de 40 anos, mãe de três filhos, divorciada, ia na igreja duas vezes por semana;, conta o empresário mineiro Giovanni Ferreira, de 33 anos. Sozinho, ele perdeu 70 mil libras (R$ 210 mil). Era a entrada de um apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, que ele juntara nos últimos 10 anos graças à renda da casa de carnes que montou na capital inglesa.

;Eu entrei em parafuso. Não era dinheiro que estava sobrando, era um investimento. Não é fácil guardar 600 libras (R$ 1,8 mil) todos os meses e ver tudo ir pelo ralo;, conta o empresário, que antes de ganhar dinheiro na Inglaterra vivia com os 10 irmãos na favela da Ventosa, em Belo Horizonte. A polícia informou que investigaria o caso, mas poucos brasileiros registraram queixa, por estarem em situação irregular no país. Rogéria enviou um e-mail a uma lista de amigos, pedindo desculpas. As vítimas suspeitam de que ela tenha fugido para Minas Gerais. A reportagem enviou mensagens para Rogéria, mas ela não respondeu.