Um dia, o mundo pareceu ter virado de cabeça para baixo. Do chão já não brotava apenas o sustento do homem do campo. Jorrava medo. Trovões já não vinham mais só do céu, mas das profundezas da terra. E carro de boi já não era só um transporte de tração animal. Era cama. Lar. Abrigo nos dias em que as paredes e o teto já não transmitiam proteção, mas ameaça. Os terremotos deixaram de ser coisa que se vê na TV, daqueles que se acredita que só acontecem com os outros. Foi assim em Alagoinha, pequena cidade do interior de Pernambuco, a 225km do Recife. Foi assim com Creuza Alves Galindo, uma das 15 mil pessoas que moram por lá. Mulher de 45 anos que aprendeu com a vida a respeitar a terra e a interpretar os sinais da natureza. Até o dia em que passou a tremer o chão que sempre lhe serviu de alicerce.
Era 8 de março de 2010, data em que a cidade sentiu o mais forte terremoto de sua história, um abalo de magnitude 3,2;. O sol já havia se posto e Creuza dormia na pequena residência de paredes brancas, feita de tijolo e barro. Acordou com a sensação de que a casa estava tremendo. Abriu os olhos e viu o guarda-roupas balançando. Agarrou-se a ele com medo de tudo vir abaixo. Tremeu junto. Continuar a dormir dentro da casa era hipótese descartada. Com um colchão e lençóis, Creuza, o marido, o filho e a nora dormiram ao relento, dentro do carro de boi ;estacionado; a pouco mais de um metro da porta da frente. Mal dava para se mexer. Poucos minutos depois, mais um tremor. E toda a família sacudiu novamente, desta vez, dentro da carroça. Ao ver a antena parabólica balançar sobre a frágil estrutura da casa, tiveram certeza de terem tomado a decisão correta. Naquele momento, essa era uma de suas poucas certezas.
O susto talvez não fosse tão grande se os tremores (1)tivessem sido sentidos em Caruaru ou São Caetano, cidades do Agreste do estado, onde abalos sísmicos já não são mais novidade. Em Alagoinha, não havia registro de nada parecido até o dia 3 de março deste ano. Os mais antigos diziam aqui e ali que, 40 anos atrás, a cidade já havia sido sacudida por tremores. Mas as lembranças desses dias nunca foram registradas. Ficaram na memória de poucos. Bem poucos. Para a maioria, tudo aquilo era novidade e cheirava a má notícia.
Estações
Em menos de 10 dias, foram mais de 60 tremores. O epicentro, descobriu-se alguns dias depois, estava bem próximo à casa de Creuza, no Sítio Lagoa de Dentro, zona rural a nordeste do centro do município. Os tremores foram sentidos num raio de 12 quilômetros. Uma equipe de sismólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) se deslocou até a cidade e apontou a necessidade de instalar sismógrafos naquela região para estudar o fenômeno. Mas, do mesmo jeito que chegaram, os terremotos se foram.
Pouco tempo depois, as estações sismográficas instaladas no estado passaram a registrar abalos em outras regiões onde esse tipo de fenômeno não havia sido registrado antes: uma nova área sísmica em São Caetano, desta vez mais perto do centro, duas regiões a noroeste e a sudoeste de Sanharó e nas cidades de Cupira, Belém de Maria e Lagoa dos Gatos, todas no Agreste e na Zona da Mata do estado. Nesses locais, os terremotos tiveram pequena magnitude e nem todos foram sentidos pela população. Nos últimos dias, segundo dados do Laboratório Sismológico da UFRN, a intensidade dos tremores no estado diminuiu, mas pequenos abalos continuam sendo registrados em Cupira e Lagoa dos Gatos.
1 - Paraíba poupada
Em Pernambuco, uma falha geológica chamada Lineamento Pernambuco corta o estado. Ela tem entre 600km e 700km de extensão e vai do Recife a Ouricuri, no Sertão, com continuidade no continente africano. Os pesquisadores do Laboratório Sismológico da UFRN já provaram que o Lineamento Pernambuco tem atividade sísmica, mas só isso não explica tudo. Afinal, por que, então, é rara a ocorrência de terremotos na Paraíba, onde existe outra grande falha geológica, chamada de Lineamento Patos? Uma pergunta que continua sem respostas.
O número
225km
Distância de Alagoinhas, onde foram registrados os tremores, para a capital Recife
Órfãos dos abalos mineiros
Luiz Ribeiro
Luiz Ribeiro/EM.DA Press - 26/5/10
Ana Alves aponta as rachaduras na parede: medo de a casa vir abaixo
;Quem olha por nós é Deus. Então, a gente sempre se apega a Ele;, diz o lavrador Edson Francisco dos Santos, que voltou a morar em Caraíbas, no município de Itacarambi, no norte de Minas. Em 9 de dezembro de 2007, a localidade foi devastada por um tremor de 4,9; na escala Richter, que matou a menina Jessequele de Oliveira Silva, de 5 anos. Foi a primeira morte provocada por um terremoto no Brasil.
Logo após o abalo sísmico, as 76 famílias de Caraíbas que tiveram as casas destruídas ou abaladas foram retiradas para a sede de Itacarambi, a 35 quilômetros do lugarejo, onde ganharam casas em um conjunto habitacional construído pelo governo mineiro. O esvaziamento de Caraíbas foi recomendado pela Defesa Civil, tendo em vista que continuam sendo registrados pequenos abalos e, a qualquer momento, pode ocorrer um outro tremor de maior magnitude, conforme estudos de pesquisadores do Observatório Sismológico da Universidade de Brasília (UnB).
Passados dois anos e cinco meses do terremoto, antigos moradores descumpriram a recomendação e voltaram para a localidade. Justificam que foram obrigados a isso porque não conseguem emprego na cidade e só sabem ;trabalhar na roça;. A reportagem percorreu comunidades próximas a Caraíbas(1), atingidas em menor proporção pelo terremoto que matou Jessequele. Nelas, moradores mostraram rachaduras nas paredes de suas casas provocadas pelo fenômeno e contam que vivem amedrontadas. ;A gente tem que ter fé em Deus. Só Ele pode resolver;, afirma José Gonçalves de Oliveira, 67 anos, que mora com a mulher, Valdeci Braz de Oliveira, de 63, na localidade de Araçá (no município de Januária), a seis quilômetros de Caraíbas. O casal aponta rachaduras nas paredes da casa simples, que, garantem, foram causadas pelo terremoto.
;Tenho medo de que aconteça um outro tremor e possa derrubar a casa e as paredes caírem em cima da gente;, diz Ana Alves Macedo, também de Araçá. ;Quando aparece na televisão notícia de terremoto em outro lugar, a gente pensa que a mesma coisa pode acontecer aqui, pois já ocorreu antes;, observa a moradora, que revela ter sentido a terra tremer pelo menos três vezes de dois anos e meio pra cá.
Em Várzea Grande, a quatro quilômetros de Caraíbas, os moradores também sentiram o chão tremer no dia em que o terremoto provocou a morte da menina Jessequele. Os efeitos no lugar foram pequenos, mas trouxeram prejuízos. O aposentado Rafael Fiuza de Oliveira, de 84 anos, viu rachaduras surgirem na parede e parte do telhado foi danificada. O aposentado gastou cerca de R$ 3 mil na reforma. ;Acho que isso é coisa da natureza. Se acontecer, a gente não tem outra alternativa a não ser aceitar;, diz.
1 - Crateras folclóricas
Ao longo dos anos, surgiram mais de 50 crateras em áreas de pasto em Caraíbas. Muitos atribuem o fenômeno aos tremores. O pesquisador Cristiano Chimpliganond, do Observatório da UnB, dá outra explicação. ;A região é calcária e com grutas subterrâneas. O calcário deve ter sido dissolvido pela água, um processo que pode durar milhões de anos. Com a dissolução da rocha, a terra afundou em alguns locais.;
Probabilidade de repetição
Depois do terremoto de 4.9 graus na Escala Richter, de dezembro de 2007, ocorreram dezenas de pequenos tremores em Caraíbas. Os registros foram feitos pelo Observatório Sismológico da UnB, que instalou estações sismográficas na região. Os novos abalos não foram sentidos pelos moradores de áreas próximas porque têm magnitude muito baixa, variando de 1.0 a 2.0 na Escala Richter. O pesquisador Cristiano Chimpliganond, pesquisador do Observatório Sismológico da UnB, explica que a sequência de pequenos tremores é algo normal em um lugar onde acontece um abalo de maior proporção, como o de 4.9 de magnitude registrado em Caraíbas. Ele disse que os ;microtremores; podem continuar na região por um período indeterminado.
O pesquisador também revela que não está descartada a possibilidade de acontecer novamente um terremoto de 4,9 ou de maior magnitude na localidade, onde existe uma fenda subterrânea, a causa do fenômeno. ;Do ponto de vista científico, a probabilidde de ocorrer um outro tremor de maior magnitude no lugar existe, sim. Mas, quando que vai acontecer, não sabemos. Pode ser amanhã ou daqui a mil anos;, diz.
O técnico do Observatório da UnB ressalta que os moradores de comunidades de Caraíbas estão numa ;região sísmica; e, nesse caso, é normal a preocupação deles com a possibilidade de acontecer um novo abalo de grande intensidade. ;A orientação para essas pessoas é a mesma que damos para moradores de outras regiões que apresentam grande sismicidade. Quando acontecer um tremor, se estiverem dentro de casa e não puderem sair rápido, que procurem se proteger debaixo de uma mesa;, recomenda.
O lavrador Edson Francisco dos Santos sabe que existe a possibilidade de ocorrer um novo terremoto em Caraíbas, mas alega que ignora o risco por causa da necessidade da sobrevivência. ;Voltei pra cá porque aqui a gente pode plantar alguma coisa. Na cidade, não tenho como arrumar emprego;, diz Edson, que lavra um pequeno terreno de sua família.
Durante o terremoto, no final de 2007, a casa dele foi parcialmente destruída. Ele trabalhou como vaqueiro numa fazenda da região durante dois anos e foi despedido. Com o dinheiro do acerto trabalhista, fez a reforma da casa em Caraíbas. ;Coloquei três colunas (pilares) e um novo telhado;, listou Edson, que mora com a mulher e três filhos. Ele revelou que fica em Caraíbas durante a semana e nos fins de semana vai para a casa que a família ganhou em Itacarambi. ;Deus olha a gente lá e aqui também;, acrescenta. (LR)
O número
4,9;