Leonardo Cavalcanti
Carlos Marcelo
Tiago Faria
O cantor Sérgio Ricardo, 77 anos, e o delegado da Polícia Federal M.J, 68 anos, nunca se conheceram, mas são personagens de uma mesma história. Enquanto o músico mostrou a cara e se expôs com versos que desagradaram aos integrantes da ditadura militar, o policial atuou em silêncio, pago pelo Estado para censurar letras de canções. Ao longo dos últimos 40 anos, apenas uma parte dessa história tem sido contada, justamente a que coube aos artistas. A outra, a dos censores, ficou escondida, muito por conta deles mesmos, que evitaram falar sobre atos tomados durante o regime militar. A série de reportagens iniciada hoje apresenta as várias faces da censura, de Sérgio Ricardo ao policial M.J, que, mesmo revelando apenas as iniciais e a silhueta do rosto, decidiu contar o trabalho realizado na Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP).
Ao longo de três meses, foram analisados documentos guardados na sede do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro e na coordenação regional do órgão em Brasília. Além das letras musicais de compositores de diferentes estilos e gerações, foram consultados documentos internos da Divisão de Censura e correspondências confidenciais trocadas entre chefes da censura com unidades de repressão, como a Divisão de Ordem Política e Social, o Dops. Em uma das cartas, o então chefe da DCDP pedia que Sérgio Ricardo fosse fichado pela ditadura ; situação desconhecida pelo próprio compositor. Durante a investigação, o Correio localizou seis censores, incluindo a temida chefe Solange Hernandes, que passou para a história como a dona da tesoura mais afiada do regime militar. Os técnicos entrevistados podem ser distribuídos em dois grupos: os que foram recrutados pelos integrantes das Forças Armadas para desempenharem o papel de censores antes da década de 1970; e os que entraram na Polícia Federal por concurso público. Todos, entretanto, sofreram fortes pressões dos militares(1).
Além de expor as tensões no interior da máquina militar, os arquivos da censura descortinam histórias de resistência até então obscuras. A reportagem mostrará, até quarta-feira, como a escola de vetos resistiu ao período de abertura política e, nos anos 1980, perseguiu a geração mais popular do rock brasileiro. Funcionários da PF vetaram canções, autorizaram a apreensão de discos e proibiram a radiodifusão de sucessos como Inútil, do Ultraje a Rigor, e A verdadeira história de Adão e Eva, escrita pela Blitz para um programa infantil. A reportagem teve acesso a documentos oficiais, ignorados pelos próprios compositores, que enumeram as justificativas dos censores para as proibições e os últimos embates entre a repressão e as gravadoras, pouco antes da Constituição de 1988.
Em entrevistas, músicos como Léo Jaime, Nando Reis, Roger Moreira e Marcelo Nova recordam as ameaças que sofreram em um período pouco lembrado pelos livros históricos. Compositores da MPB como Marku Ribas e a dupla Kleiton & Kledir contam por que foram obrigados, por motivos políticos, a alterar versos de canções. Outros, como Chico Buarque e os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, combateram a vigilância nas entrelinhas da poesia. E mais: o Correio revelará que muitos músicos de Brasília, alguns deles ainda em atividade, chegavam a discutir pessoalmente os motivos da proibição com os responsáveis pela tesoura oficial. Arte mutilada, formas de expressão sob o controle do Estado. Histórias ocultas de tempos sombrios e que agora vêm à tona nesta série de reportagens.
1 - Os intocáveis
;Consegui indicar nomes de civis para todos os cargos da pasta, menos o da Polícia Federal, justamente quem comandava a Divisão de Censura;
Fernando Lyra, ministro da Justiça entre 1985 e 1986
Um veto
;Senhor chefe,opino para que seja mantida a interdição da letra musical Ninguém segura este país por considerar uma irreverência a citação do nome do sr. Presidente da República;
Trecho de parecer da técnica de censura Hellé Carvalhedo, assinado em janeiro de 1971, durante o governo Médici, sobre samba-enredo da Acadêmicos da Asa Norte
O número
Os números do silêncio
736 caixas
Os documentos referentes à censura de letras musicais, guardados na coordenação regional do Arquivo Nacional em Brasília, equivalem a 597 metros de papéis enfileirados. Os documentos foram abertos pela Polícia Federal em 1989 e transportados da sede da corporação até o Arquivo Nacional naquele mesmo ano. Atualmente estão condicionados no subsolo do órgão. Na sede do Arquivo Nacional, no centro do Rio, há outras centenas de caixas desde 1993, muitas sem nenhum controle e em péssimo estado de conservação.