;Ficamos órfãos de um gênio do humor;, disse o cartunista paulistano Caco Galhardo sobre a morte de Glauco. O comentário não é exagero. Glauco Villas-Boas deixa como legado não apenas um texto bem-humorado e de olhar atento para tipos e comportamentos cotidianos, mas uma marca visual inconfundível.
Impossível não olhar para um desenho de Glauco e não reconhecê-lo imediatamente como sendo do autor. Hiperativos, seus personagens parecem estar em constante movimento, com múltiplos pernas e braços. Mais do que sugerir a ação por meio dos desenhos, ele utilizava tais recursos gráficos para criticar a sociedade de consumo. Pode reparar: Geraldão carrega copos de bebidas, cachorros quentes, tem três ou quatro cigarros na boca, seringas enfiadas pelo corpo e uma garrafa equilibrada na cabeça. O retrato de um consumidor voraz. E que ainda por cima não sai de casa, não tem amigos, vive eternamente à custa da mãe.
;O estilo dele como cartunista foi revolucionário. Ele rompeu com o jeito de fazer quadrinhos de humor que a gente conhecia no Brasil com um material mais escrachado. Direta ou indiretamente, fomos todos influenciados pelo trabalho dele. Eu, inclusive;, afirma Fernando Gonzales, pai do Níquel Náusea.
;Conheci o Glauco na República do Henfil, no fim dos anos 1970 ; em que o Laerte e outros então jovens autores produziam;, lembra o cartunista e ilustrador gaúcho Edgar Vasques. ;Ele estava muito mais interessado na transgressão comportamental do que na crítica política;, continua o desenhista. Vasques observa que Glauco e seus colegas de geração se diferenciavam dos cartunistas mais velhos pelo fato de terem vivido muito daquilo que inspirava suas tiras. ;Eles olhavam não só a sociedade, mas a si mesmos dentro da sociedade.;
;Eu era moleque e ia à banca comprar as revistas Chiclete com banana, Geraldão; Todo aquele universo maluco, os bonequinhos com milhões de cigarros, drinques e seringas era uma coisa mais libertária, mais porra louca, do que uma apologia às drogas. Na verdade, era mais uma apologia à diversão. Fiquei chocado com a morte, para dizer o mínimo;, disse o desenhista gaúcho Allan Sieber.
Ao longo do dia, após a divulgação da morte do cartunista, colegas de profissão e artistas de outras áreas lamentaram a perda em comentários no Twitter ou em outros sites. O amigo Angeli, com quem dividiu os traços inúmeras vezes, ressaltou que acabou se influenciando pelo humor de Glauco. ;Viramos amigos de peito, tivemos histórias de vida juntos. Estou realmente sem eixo.;
Vítima da mesma violência, o dramaturgo Mario Bortolotto lembrou do próprio drama: ;Fui vítima da violência e agora o Glauco. O mundo está muito mais violento do que há 10 anos;.
; perfil - Glauco
Criador de várias vidas
Walter Sebastião e Pedro Brandt
;Um artista no sentido profundo da palavra. Extremamente pessoal na forma de ver o mundo, na arte, no desenho, na sua inquietude e indignação. Glauco é um desse caras geniais do humor brasileiro. A morte dele é perda para todos nós;, lamentou o chargista mineiro Lor. Glauco nasceu em 10 de março de 1957, em Jandaia do Sul, Paraná, e é da família dos sertanistas Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Boas. Mudou-se em 1976 para Ribeirão Preto, onde publicou sua primeira tira de quadrinhos no Diário da Manhã. Transferiu-se, no fim dos anos 1970, para São Paulo, tendo seus trabalhos editados em revistas underground como Circo e Chiclete com banana.
O desenhista fez parte da famosa ;geração Circo;, referência à editora Circo Editorial, que, em meados dos anos 1980, colocou nas bancas do Brasil revistas assinadas por Angeli, Laerte e Fernando Gonzales e do próprio Glauco. Com Laerte e Angeli, Glauco fez a série Los Tres Amigos, protagonizada pelos próprios cartunistas e uma das criações mais populares desses autores.
Ainda na década de 1980, Glauco foi redator do humorístico TV Pirata. No começo da década de 1990, ele exerceu a mesma função no programa infantil TV Colosso.
Glauco Villas-Boas, a partir de 1984, trabalhou na Folha de S. Paulo, onde desenvolveu seus personagens mais conhecidos, como Geraldão, Neuras, Doy Jorge, Zé do Apocalipse entre outros. Charges e tiras dele estão reunidas nos álbuns Minorias, Abobrinhas da Brasilônia e Geraldão. Para Wellington Srbek, professor e pesquisador de histórias em quadrinho, o artista integra, com autores como Angelli, Luiz Gê, Laerte, a geração que começou suas atividades nos anos 1970 e explodiu nos anos 1980. ;Fizeram um humor mais escrachado, crítica de comportamentos, que era diferente do humor voltado para a política da geração dos anos 1960. Foi nova estética que promoveu uma transformação nos quadrinhos brasileiros;, observou.
Engraçado
;Singularidade da obra de Glauco é ter tornado características psicológicas dos personagens o elemento principal das histórias;, analisa Wellington Srbek. O melhor exemplo, aponta, é o personagem Geraldão, movido a álcool, drogas e complexo de Édipo. O mesmo motivo aparece no ciúme doentio do casal Neuras, na obsessão pelo sexo da personagem Dona Marta, na paranoia do personagem Doy Jorge. ;Glauco desnuda essas neuroses com abordagem direta, visceral e, ao mesmo tempo, cândida. Que por ser honesta, aberta, não agride ninguém e se torna abordagem muito engraçada da vida;, explicou Srbek.
As circunstâncias da morte de Glauco Villas-Boas geraram comoção. ;Fico perplexo com a violência do acontecido. Glauco era um homem pacífico, incapaz de fazer mal. As brigas dele eram no desenho;, conta o também chargista Nilson. O mineiro foi amigo de Glauco, morou com ele na casa de Henfil, no começo dos anos 1980. ;Glauco era uma doçura, a alegria em pessoa. Dono de inteligência fantástica, tinha jeito meio infantil e quando não estava desenhando estava tocando violão;, recordou Nilson.
; Artigo - Amaro Júnior
Ao Renascimento, o Glauco!
Quando estudante de desenho industrial, no começo da década de 1990, tinha em mente o desejo de me tornar um desenhista com estilo renascentista. As pinturas e os esboços de Da Vinci, Michelângelo, entre outros, instigavam minhas aspirações. Para isso, busquei uma cadeira chamada anatomia artística, em que partes de corpos humanos eram distribuídos aos estudantes, em laboratórios altamente qualificados para tal ofício. Eram as chamadas peças humanas. Cada um com a sua, devidamente tombadas com patrimônio da instituição, seguiam-se às aulas.
A professora, uma colombiana que havia trabalhado sete anos no IML de Brasília e adorava artes, repassava o dever e comentava em bom portunhol: ;Este quadro do Caravaggio é lindo, pero la sobreposición do esternocleidomastóideo com la clavícula está errada. Prestem antención en las peças! Mirem los muslos!” Bem, lá íamos verificar a junção de músculos, braços antebraços, nervos e tendões. Uma tarefa untada com expectorantes abaixo do nariz, para aliviar o cheiro do formol.
Ainda nos anos 1990, estava fuçando prateleiras da biblioteca e vi um catálogo do Salão Internacional de Humor de Piracicaba. Tratava-se de uma capa com desenho de um passarinho. Este, dentro de uma gaiola com a porta aberta e um olhar arregalado, expressando desconfiança, medo. Referente à edição de 1979, a capa, assinada pelo Glauco, antecipava o ocaso da ditadura militar. A lei da anistia, promulgada pelo general Figueiredo naquele mesmo ano, era um dos sinais do fim da era de farda. No entanto, do que se pode entender do desenho, mesmo com a porta aberta da gaiola, o medo e a desconfiança gerados por 15 anos de repressão até então ainda nos manteriam presos. Tudo isso evidenciado no olhar daquela frágil ave amarela.
O historiador e pesquisador da Universidade de São Paulo Marcos Antônio Silva analisou em seu texto Machos & Mixos. Henfil e o fim da ditadura militar, uma série de práticas ditatoriais enraizadas na sociedade civil e nos mínimos atos cotidianos. A ditadura impregnou-se em nossas almas, costumes e aquele desenho do Glauco imortalizou esse sentimento.
Desde então, a gaiola feita em rabiscos simples, apenas duas cores, não abandonou minha cabeça. Esqueci o Renascimento. Queria ser cartunista como o Glauco. Um estilo de desenho com muito mais músculos, nervos que qualquer quadro do século 15. Adeus, Leonardo Da Vinci! Adeus aos Michelângelos, o Buonarroti e o Caravaggio! Viva, Glauco! Viva, Glauco! Viva.
Amaro Júnior é ilustrador do Correio Braziliense
O cartunista Allan Sieber comenta a morte de Glauco