O incêndio de um micro-ônibus que deixou pelo menos 13 pessoas queimadas, cinco delas em estado grave, é considerado pelas autoridades do Rio de Janeiro uma resposta de grupos criminosos contra a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) implantada na Cidade de Deus há pouco mais de um ano. Cerca de 20 minutos depois que o traficante Leandro de Oliveira da Silva foi preso com 75 trouxinhas de cocaína na noite de terça-feira, na comunidade com um dos piores indicadores sociais da capital fluminense, um grupo de aproximadamente dez pessoas ateou fogo ao veículo. Classificado de ;surreal; pelo tenente-coronel da Polícia Militar do Rio Henrique Lima Castro, o ato chocou os homens fardados tão acostumados à guerra urbana da cidade partida. Auxiliados por denúncias dos próprios moradores da favela, eles trabalham com a tese de que o ataque partiu de parentes de Leandro.
;Essa reação foi descabida, de uma crueldade enorme, de uma violência sem tamanho;, lamentou Lima Castro. De acordo com o depoimento de duas vítimas que estão sendo tratadas no hospital da Polícia Militar, o tenente-coronel ressaltou que os criminosos, de fato, tentavam impedir a saída das pessoas do ônibus. ;Foi a impressão que elas tiveram;, destaca o policial. Para especialistas, o terror praticado nesse ato tem a intenção clara de demonstrar poder. ;Usar alvos civis é algo muito comum para passar tal mensagem, ainda por cima numa ação panfletária, midiática, que chama a atenção da opinião pública;, explica Robson Sávio Reis Souza, pesquisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (Crisp).
Segundo Robson, a ação se diferencia de atos terroristas por não haver um desejo de tomada de poder. ;Os traficantes querem o poder econômico e localizado, não o poder político. Mas no que diz respeito à sensação de desconforto e pânico, a atuação é a mesma;, compara. O especialista em segurança pública Ignácio Cano, membro do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), concorda. Conhecedor da realidade carioca, ele chama a atenção para o tamanho ; 38 mil habitantes no Censo 2000 ; e para a complexidade da Cidade de Deus.
Corpo queimado
;O nível de controle da polícia pacificadora não é o mesmo de outras comunidades que têm a UPP, atualmente oito no Rio. Na Cidade de Deus, o processo tende a ser mais complexo em função da vulnerabilidade social daquela comunidade;, destaca Cano. Mesmo assim, o especialista não questiona o modelo da UPP. ;O balanço tem sido muito positivo, mesmo com esse ataque ao ônibus. Até porque seria ingenuidade imaginar que não haveria resistência;, defende. Robson, do Crisp, também tem uma visão positiva da polícia pacificadora. Ele só chama atenção, porém, para um problema histórico na segurança pública do Rio. ;É necessário, apenas, garantir uma ocupação do território de forma planejada, articulada, para que a população não acabe pagando a conta;, diz.
Ontem, pelo menos cinco pessoas foram ouvidas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. ;Estamos nos concentrando nos familiares do Leandro para checar denúncias que nos chegam;, destacou Lima Castro. Embora os depoimentos de sobreviventes indiquem cerca de 10 pessoas como autores do incêndio, quatro parecem ser as líderes e uma delas teria jogado uma pedra para fazer o ônibus parar. ;O restante entra na coisa pelo oba-oba, é sempre assim;, diz o tenente-coronel. Ele destacou que a polícia pode contar com gravações do ato, já que o local é cercado por estabelecimentos comerciais, mas não confirmou a existência de vídeos. ;Ainda estamos verificando essa possibilidade. São informações que devem ser mantidas em sigilo para não atrapalhar as investigações;, explica Lima Castro.
Entre os 13 feridos, o caso mais grave é o de Laís de Melo Rodrigues, 21 anos, que teve 48% do corpo queimado. Paula Núbia Rodrigues, 23 anos, também continua internada, com 25% do corpo atingido. Cinco pessoas tiveram alta, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, ontem.
; Memória
Identificação por DNA
Na madrugada de 28 de dezembro de 2006, em meio a uma onda de ataques a delegacias da Polícia Civil e postos da Polícia Militar no Rio de Janeiro, um ônibus foi incendiado, resultando na morte de nove pessoas ; sete carbonizadas. A identificação dessas vítimas só foi possível por meio de exames de DNA. O ônibus, da Viação Itapemirim, seguia de Cachoeiro de Itapemirim (ES) para São Paulo, quando o motorista acabou surpreendido no trevo das Missões, que liga a Avenida Brasil à rodovia Washington Luís, por traficantes. Um dos criminosos entrou, roubou passageiros, espalhou gasolina no corredor e ateou fogo no veículo. Havia 28 passageiros.
Uma das sobreviventes do ataque ao ônibus, a modelo capixaba Maria Beatriz Furtado de Araújo, ou Bia Furtado, como era mais conhecida, teve 45% do corpo queimado. Depois de recuperada dos traumas, ela declarou publicamente que não tinha raiva do homem que ateou fogo no ônibus, só não entendia o motivo de não deixar os passageiros saírem. ;Se ele fez aquilo, é porque não teve condições de estudar como eu. O Estado não faz nada;, criticou a modelo. (RM)
Tiroteio na Linha Amarela
Motoristas que passavam pela Linha Amarela, no Rio, voltaram a viver momentos de pânico ontem, por conta de um tiroteio na altura da Favela da Maré. O tiroteio começou quando a polícia chegou ao local para uma operação de combate ao tráfico na Vila dos Pinheiros, assustando os motoristas, que voltaram na contramão. Na terça-feira, quatro criminosos já haviam fechado a Linha Amarela, perto de Inhaúma, para assaltar motoristas. Eles roubaram um carro e levaram objetos de valor de mais três pessoas.