Jornal Correio Braziliense

Brasil

O crack atinge os filhos dos ricos

Sem distinção de classe social, a "pedra da morte" é usada por estudantes de escolas particulares e universitários



Rafael, morador da capital pernambucana: aos 20 anos, sentia-se o ;cara;, com dinheiro, mulheres e drogas


Filho de uma finlandesa e de um corretor de imóveis bem sucedido, Rafael, de 20 anos, estudou nas melhores escolas particulares do Recife. O menino loiro e de olhos verdes começou a fumar maconha aos 13 anos. Dois anos depois, veio a cocaína. Com a droga, a possibilidade de ganhar dinheiro. Percorria quilômetros até o sertão do estado para trazer carregamentos de maconha para a capital. Nunca foi parado em operações policiais, comuns na região.

;Comecei a usar e a vender drogas buscando aceitação dos amigos. Me sentia o ;cara;, com dinheiro na carteira e mulheres;, diz. Naquela época, morava com o pai, separado da mãe havia quatro anos, e que não poupava agrados ao filho. ;Tudo o que pedia ele me dava;, conta, lembrando que o pai era companheiro de copo. Mesmo com o uso excessivo de drogas do filho ; que aos 16 já conhecia o crack ;, o pai de Rafael decidiu lhe dar um prêmio quando concluiu o segundo grau. Presenteou o jovem com um carro. ;Não tinha maturidade. Comecei a usá-lo para vender drogas e curtir as festas. Com cinco meses, acabei com ele depois de uma bebedeira;, recorda.

Ele ainda tentou investir na carreira de corretor de imóveis, assim como o pai, e cursou o primeiro período de direito e de gestão de negócios. Não conseguiu dar continuidade. Chegou a ser flagrado por policiais nas favelas da cidade. Teve companheiros de tráfico presos, foi internado duas vezes por períodos curtos e sempre voltou ao vício. Também teve discussões com o pai e agrediu fisicamente a namorada, com quem convive há quatro anos.

Está sem usar drogas há cinco meses e 27 dias. Voltou ontem para casa depois de um internamento forçado em uma comunidade terapêutica de Igarassu, na região metropolitana do Recife. ;Se meus pais voltassem a se falar, ajudaria muito na minha recuperação;, conta, revelando que viu o pai espancar a mãe e traí-la. As duas irmãs do jovem, de 23 e 25 anos, também são dependentes de drogas.

Clínicas
O custo de um tratamento em clínicas particulares não é para qualquer um. Em Curitiba, no Paraná, as diárias custam R$ 400. O Correio visitou uma delas. Entre os pacientes, C., um rapaz moreno, de 28 anos, que já ganhou alguns quilos perdidos com a droga. Mas os olhos ainda estão carregados de culpa e medo de novas recaídas. Está na segunda internação. Abandonou o emprego conquistado em concurso publico. Entre 2,4 mil candidatos, passou em oitavo lugar para auxiliar de laboratório na secretária de Saúde de Foz do Iguaçu, onde morava.

O fundo do poço chegou quando totalmente rendido pela droga se entregou aos traficantes. C. foi para a favela, se instalou na casa de um deles e teve o carro levado. Os traficantes passaram o veículo por R$ 700. O receptador ligou para a mãe do rapaz e chantageou: ;Se quiser de volta o carro do seu filho vai ter de comprar de mim;. A mãe foi até a favela resgatar o carro e o filho. ;Foi demais. Minha mãe ficou desesperada. Me senti muito mal. Foi aí que pedi ajuda;, conta.

Rapaz de classe média, C. faz referências a cientistas e pensadores durante a conversa. Fez faculdade de farmácia: ;A cocaína não me pegou. Usei, mas não me escravizou. Conseguia sair. Achava que esse negócio de viciado era coisa de fraco. Que meu organismo era diferente. Mas fui dominado. Pegava meu salário e gastava tudo em pedra;, lembra. Não havia mais prazer algum na vida: não conversa com os amigos, nem o abraço da mãe, nem mesmo sexo. ;Se eu tivesse que escolher entre a mulher mais gostosa do mundo e uma pedra, eu ia na pedra;, afirma. Agora tenta ganhar autoconfiança. ;Não consigo pensar no futuro. Para mim, a luta é conseguir chegar ao fim do dia sem pensar na droga. É me fortalecer para sair e saber viver sem ela;, diz.








L., 27 anos, conta o tempo de abstinência: ;Não uso nada há quatro anos, dois meses e três dias;


Leonardo Augusto
O uso do crack deu um apelido a N., de 40 anos. Ficou conhecido entre traficantes e colegas no uso da droga como Trinta Reais. Era o valor que queria por tudo o que retirava de casa para vender e manter o vício. ;Uma guitarra de mais de R$ 2.000, vendi por R$ 30. Um aparelho de som que valia mais de R$ 1.000 também repassei por R$ 30;, conta N., hoje agente comunitário, longe das drogas há quatro anos.

O começo no crack aconteceu em uma noite em que não encontrou outras drogas. ;Usava maconha e cocaína. Um dia fui comprar e não tinha. Queria chapar de qualquer jeito e acabei comprando as pedras;, conta. N. consumiu a droga durante oito anos. Perdeu o emprego como segurança em eletrônica por causa do crack. ;No final, não trabalhava nos três dias posteriores aos recebimento do salário, que era quinzenal.;

N. chegou a acionar um tipo de estabelecimento conhecido como topa-tudo (que compra e vende móveis usados) para negociar o que restou na casa dos pais, deixada de herança. ;Não me pagaram nem um por centro do que realmente valia. O crack faz você perder a referência de tudo, financeira, emocional. Você o elege como o que há de mais valoroso;, diz.

Colega de N. na área de serviços comunitários, L., de 27 anos, tem história parecida. Também começou com o crack porque, em uma noite, não conseguiu outro tipo de droga. ;Passei quatro dias usando cocaína. Quando acabou, perguntei a um amigo se tinha mais. Ele disse que não, mas que poderia comprar crack, e acabei tendo o primeiro contato com a droga.; Hoje, conta nos dedos o período em que está ;limpo;. ;Não uso nada há quatros anos, dois meses e três dias.;

Para sustentar o vício, L., filho de funcionários públicos, chegou a emprestar o carro para traficantes, além de utilizar o veículo para pegar drogas para vendedores de crack, no chamado ;aviãozinho;. ;Cheguei a ir 12 vezes em um dia até o (Aglomerado) Pedreira Prado Lopes pegar carregamento da droga. Em troca, eu recebia pedras para o meu consumo.; Pelo envolvimento com o crack, L. chegou a participar, armado, de brigas de gangues pelo controle de pontos de droga. ;Já dei muitos tiros. Não tenho como garantir se machuquei alguém.;

Aos 30 anos, T. fumou crack pela primeira vez aos 16 anos. Voltou à droga aos 20, e novamente aos 23. O contato mais recente ocorreu há 12 dias. Filho de uma comerciante e de um jornalista, procurou tratamento em 2006. Nos últimos três anos, teve três passagens por casas de recuperação. ;Se tiver uma gota de álcool em um suco é o suficiente para desencadear todo um processo de recaída;, diz.

Prefeito entre as vítimas
Eleito em outubro do ano passado para governar Raposos, cidade de 15 mil habitantes a 27km de Belo Horizonte, João Carlos da Aparecida (PT), de 45 anos, teve que pedir licença por seis meses do cargo para se submeter a tratamento, depois de ter ido parar na delegacia por causa da droga. O envolvimento de João Carlos com o crack se tornou público na madrugada de 27 de março, uma sexta-feira. O prefeito foi detido perto de um ponto de venda de drogas no Aglomerado Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte, em um carro oficial.

Segundo informações do 34; Batalhão da Polícia Militar, responsável pela guarda na região, João Carlos, ao lado de um homem identificado apenas como Frederico, foi abordado depois de denúncia anônima. Os policiais foram até o local conhecido como ;Buraco Quente;, onde estava o prefeito. Ainda conforme a polícia, Frederico teria confirmado que estavam no local para comprar droga. Mas, durante revista, nada foi encontrado e os dois foram liberados.

Advogados do prefeito chegaram a divulgar nota oficial negando que João Carlos tivesse comprado drogas na Pedreira Prado Lopes. O texto afirmava que ;depois de solenidade na Assembleia Legislativa, o prefeito se dirigia à casa de seu amigo Ricardo de Moura, na Pedreira Prado Lopes. Frise-se que o prefeito estava sozinho, dirigindo o veículo oficial;. A defesa afirmava ainda haver possibilidade de perseguição política contra João Carlos. No entanto, menos de um mês depois, em 25 de outubro, um domingo, o prefeito foi preso no bairro Bonfim, região noroeste da capital, com três pedras de crack. A polícia informou ter conseguido fazer a abordagem também depois de denúncia anônima.

Dois dias depois da prisão, o vice-prefeito de Raposos, Nélcio Duarte (PT), assumiu o governo de Raposos. No discurso de posse, pediu orações pela recuperação do prefeito. A família se nega a dar informações sobre o estado de saúde de João Carlos, que, segundo funcionários da Câmara de Vereadores, estaria internado no hospital André Luiz, em Belo Horizonte. A direção da casa, no entanto, nega que o prefeito esteja em tratamento no hospital.








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