Jornal Correio Braziliense

Brasil

Projeto de lei aprovado pela Câmara põe em lados opostos médicos e outros profissionais da saúde

Esses profissionais prometem recorrer à Justiça contra a proposta. Texto ainda precisa passar pelo Senado

Três milhões de profissionais de saúde podem ser afetados pelo Projeto de Lei 7.703/2006, que define as atividades privativas dos médicos e as que podem ser desempenhadas por outras categorias. De acordo com a proposta, de autoria do Senado e aprovada na semana passada pela Câmara dos Deputados, passam a ser funções exclusivas dos formados em medicina a indicação e execução da intervenção cirúrgica, a solicitação de internação e alta médica, e a atestação de condições de saúde, deficiência e doença.

Enquanto os cerca de 340 mil médicos comemoram a decisão da Câmara, que, entre outros itens, regulamenta a profissão, os representantes dos 2,7 milhões de profissionais de outras 13 especialidades da área de saúde consideram o texto restritivo e corporativista. Um dos pontos mais polêmicos é o que retira dos farmacêuticos e bioquímicos o direito de realizar exames citopatológicos(1). ;Não somos contra a regulamentação profissional dos médicos. Entretanto, se o Senado confirmar a decisão da Câmara, milhões de mulheres perderão acesso ao papanicolau, exame que confirma o câncer uterino. Os médicos, que também realizam esses diagnósticos, querem é uma reserva de mercado;, argumenta o presidente do Conselho Federal de Farmácia (CFF), Jaldo de Souza Santos.

O representante dos farmacêuticos lembra que o papanicolau não é considerado pelas literaturas nacional e internacional um diagnóstico. ;É, na verdade, um teste de rastreamento de lesões precursoras do câncer e do próprio câncer uterino. Uma vez identificada uma alteração pré-maligna ou maligna, esses achados terão o diagnóstico feito por meio da biópsia e do exame histopatológico ; estes, sim, procedimentos médicos;, diz Santos, afirmando que, entre os profissionais autorizados a realizarem exame citopatológico, os farmacêuticos especialistas na área são a maioria.

Segurança

Contrário à opinião de Jaldo, o vice-presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), José Erivalder Guimarães, destaca que a regulamentação da medicina será benéfica à população brasileira. ;O médico terá mais responsabilidade. Isso possibilitará mais tranquilidade e que outros não façam a atividade, que é inerente à atividade médica. Esperamos que o Senado mantenha o texto, aprovado por quase unanimidade na Câmara;, observa. Na prática, segundo Guimarães, a população que utiliza o Sistema Único de Saúde (SUS) terá mais segurança nos procedimentos. ;Os atendimentos terão mais qualidade. No caso da citologia, quem tem que atuar nessa área é o médico. O diagnóstico vai ser feito por quem efetivamente estudou o assunto com profundidade;, rebate.

Para o vice-presidente da Fenam, as outras categorias de saúde trabalham com questões subjetivas. ;Não é corporativismo. Duvido que alguém da população vá fazer uma biópsia, ou seja, citologia de próstata, por exemplo, com um profissional não qualificado. Ela vai querer orientação de um médico. Se essa possibilidade for aberta, corre-se o risco de (o exame) ser feito por uma pessoa despreparada. Jamais me arriscaria a atuar numa área para a qual não estou habilitado;, afirma.

Hierarquia

Fisioterapeuta ocupacional, a deputada Gorete Pereira (PR-CE) explica que não é contra a regulamentação da profissão do médico, mas discorda do item que acaba com o direito de o bioquímico de fazer um laudo. ;Além disso, o texto institui uma hierarquia entre as profissões da área da saúde, uma vez que o diagnóstico e o tratamento terapêutico poderão ser determinados apenas por médicos.;

Autor do site www.atomediconao.com.br, o presidente do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional de São Paulo (Crefito-SP), Gil Lúcio Almeida, acha um retrocesso a aprovação do projeto. ;É extremamente corporativista, impede a atuação e invade atos privativos de outros profissionais;, afirma. Na avaliação dele, a medida também vai cercear o direito da população ao livre acesso à saúde. ;Caso o Senado aprove o projeto, os médicos terão o direito de prescrever os tratamentos em áreas que eles não possuem treinamento e competência, como psicologia, enfermagem, nutrição, fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional, educação física, farmácia, biomedicina, medicina veterinária, odontologia, serviço social e ciências biológicas;, enumera. Gil ressalta que os médicos precisariam ter mais treinamento para adquirir todas as especifidades e competências desses 13 profissionais.

Formado há 30 anos pela Faculdade de Ciências Médicas de Pernambuco, o urologista Luciano Carvalho, vice-presidente da Associação Médica de Brasília (AMBr), justifica que a aprovação do projeto vai definir a atuação de cada profissional. ;É fundamental para estabelecer muito bem onde cada um deve trabalhar, com limites e determinações;. Carvalho minimiza a polêmica sobre a criação de uma hierarquia entre os responsáveis pelos cuidados de um paciente. ;O médico reconhece, entende e solicita a participação de outros profissionais. A regulamentação dessas normas jamais vai impedir o trabalho em equipe;, diz.


1 - Identificação de câncer
Também conhecido como teste de papanicolau, citologia oncótica e pap text, o exame citopatológico, é um método desenvolvido pelo médico George Papanicolaou para a identificação de células atípicas, malignas ou pré-malignas. As células são colhidas na região do orifício externo do colo e canal endocervical, colocadas em uma lâmina transparente de vidro e, em seguida, levadas ao exame microscópio, no qual o profissional de saúde pode distinguir quais são as células normais e as que apresentam alterações indicativas de lesões pré-malignas.


Enxurrada de ações na Justiça

Descontentes com a aprovação do projeto de 7.703/2006, que regulamenta a profissão de médico e restringe a atuação de outros colegas da área de saúde, os conselhos de psicologia, enfermagem, nutrição, fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional, educação física, farmácia, biomedicina, medicina veterinária, odontologia, serviço social e ciências biológicas prometem uma enxurrada de ações na Justiça para garantir que seus integrantes continuem a prescrever tratamentos.

Presidente do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Distrito Federal e Goiás (Crefito), Eduardo Ravagni diz que a regulamentação de uma profissão não pode restringir a atuação de outras. ;Por isso, se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não vetar essa lei, vamos ingressar com uma Adin (ação direta de inconstitucionalidade) no STF (Supremo Tribunal Federal);, informa.

Há pelo menos sete anos o Congresso Nacional debate a regulamentação da profissão de médico. Aprovada no último dia 21 pelo plenário da Câmara, a proposta ainda precisa ser examinada pelo Senado, pois sofreu alterações durante sua tramitação nas comissões da Casa.


Funções de cada um
Conhecido como ato médico, o projeto de lei aprovado pela Câmara regulamenta as atividades exclusivas dos médicos e as que podem ser exercidas por outros profissionais de saúde.

Médicos ; São responsabilidades desse segmento a indicação e a execução de cirurgias, bloqueios anestésicos e anestesia geral e execução de procedimentos invasivos da pele e do tecido abaixo da pele, assim como em orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos. Os procedimentos não se aplicam ao exercício da odontologia, no âmbito de sua área de atuação.

Outros profissionais ;
De acordo com a proposta, não são responsabilidades exclusivas dos médicos os diagnósticos realizados por outros profissionais, tais como psicológico, nutricional, de avaliação comportamental e das capacidades mental, sensorial e psicomotora.

Procedimentos ; Realizadas por outros profissionais, as atividades mais simples não são peculiaridades dos médicos. Pelo texto, ficam de fora da responsabilidade médica a aplicação de injeções subcutâneas, intramusculares ou intravenosas, coleta de material biológico para análise laboratorial, realização de exames citopatológicos e seus laudos, e realização de cateterismo sem cirurgias (no esôfago ou no nariz). A indicação médica é indispensável para o procedimento.