O Brasil deixa de ganhar cerca de US$ 2,4 bilhões todos os anos por conta de uma polÃtica ineficiente de controle do patrimônio genético brasileiro. É essa a quantia movimentada pelo comércio ilegal da biopirataria, responsável pelo contrabando de plantas e animais, como o sapo e a aranha, que dão origem a produtos desenvolvidos, patenteados e comercializados por empresas internacionais, as maiores financiadoras desse tipo de crime. As substâncias retiradas desses organismos vivos servem, por exemplo, para a fabricação de medicamentos e cosméticos. Os dados saÃram de uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), realizada em 2006.
Hoje, os ministros do Meio Ambiente, Carlos Minc, e da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, assinam um Projeto de Lei (PL) que trata do acesso e da coleta do patrimônio genético brasileiro e - em tese - dificulta a biopirataria. O texto, que sela um acordo inédito entre as áreas tecnológica e ambientalista do governo para o controle do crime, segue para a Casa Civil e será apreciado depois pelo Congresso Nacional.
O novo texto substituirá a Medida Provisória 2.186-16, de 2001, que regulamenta o acesso e a coleta ao patrimônio genético nacional e é alvo de crÃticas dos pesquisadores por dificultar estudos e acesso à biodiversidade. O assunto também nunca esteve muito afinado com o próprio governo, pois se arrastava há três anos com excesso de divergências entre os ministérios envolvidos e um grande número de artigos - eram 200 e chegaram a 72 - até que se chegasse à versão final.
O ministro do Meio Ambiente considera que a assinatura do PL será um avanço para a proteção do patrimônio genético porque facilitará, inclusive, o acesso dos pesquisadores a áreas de preservação e dará agilidade ao pedidos para acesso a essas áreas. Mas, apesar de considerado um grande passo para o governo, há quem defenda o contrário.
É o caso do pesquisador do departamento de farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), Sérgio Henrique Ferreira. Ele acredita que nenhuma mudança surtirá efeito se não houver mudança na lei de patentes que - sustenta o expert - está fortemente ligada à biopirataria. "Não adianta nada modificar a legislação sem mexer na lei de patentes no Brasil porque sem o direito de fazer o extratos das plantas, assim como fazem Japão e Estados Unidos, ficaremos de mãos atacadas", critica.
Sérgio Ferreira tem conhecimento de causa quando fala sobre o tema. Ele foi o responsável pela descoberta do veneno da jararaca na década de 60 e percebeu a falta de estrutura na pesquisa brasileira na hora de levar a sua descoberta adiante. "Eu descobri um fator existente no veneno, mostrei que ele existia, fiz a sÃntese, fiz a farmacologia, mas não tinha para quem entregar o conhecimento no Brasil. Então, cheguei à conclusão de que somos incapazes de cuidar da nossa própria riqueza genética", completa.
A falta de laboratórios capacitados no paÃs mostrou naquele momento que a pesquisa brasileira se limitava apenas ao conhecimento acadêmico. O estudo do pesquisador acabou aproveitado por um laboratório estrangeiro que criou a droga de combate à hipertensão e insuficiência cardÃaca - a captropill -, rendeu lucros milionários à empresa farmacêutica. E nenhum centavo ao pesquisador.
Alternativas
Para que o Brasil evite casos como esses, o especialista explica que a solução seria seguir o exemplo de paÃses como China e Ãndia, que investiram na indústria quÃmica como forma de se apoderar do potencial genético de suas riquezas naturais. "Nosso principal problema é a incapacidade de transformar o conhecimento acadêmico em conhecimento industrial. O Brasil não está preparado para atingir esse desenvolvimento da forma como trata o tema hoje", conclui.
A coordenadora da comissão de estudos de biotecnologia da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, Leonor Debotton, concorda com Sérgio Ferreira. Ela afirma que a lei de patentes, regulamentada pela lei de propriedade industrial, é limitada.
A especialista cita um trecho do artigo 10 que, segundo ela, é o principal problema em questão, ao não permitir o patenteamento de moléculas naturais, o que já ocorre em outros paÃses. "A legislação trava qualquer processo cientÃfico porque o pesquisador pode extrair o recurso genético, mas não pode patentear, ou seja, tem acesso, mas não o poderio sobre aquela descoberta", alerta.
A especialista alerta ainda que restam às empresas nacionais que trabalham no ramo e pesquisadores apenas duas alternativas: desistir da pesquisa envolvendo substâncias naturais ou, após anos de pesquisas, patentear e licenciar as suas invenções fora do Brasil, onde elas são aceitas.
Royalties e direitos
Numa tentativa de evitar que o patrimônio genético se perca nas mãos de empresas internacionais que ganham milhões em cima da biodiversidade nacional, o governo brasileiro tentará colocar em debate, em 2010, no Japão, durante a COP-10, reunião dos paÃses signatários da Convenção sobre Biodiversidade, a aprovação da entrada em vigor do Sistema de Acesso e Repartição dos BenefÃcios pelo Uso da Biodiversidade (ABS, na sigla em inglês).
O sistema é um mecanismo internacional que serviria para determinar o pagamento por matéria-prima obtida a partir do patrimônio genético, tanto dos paÃses detentores da biodiversidade quanto das comunidades detentoras desse patrimônio genético, como indÃgenas, ribeirinhos, entre outros. "Hoje, por exemplo, um laboratório suÃço vai para o cerrado, para a Amazônia e coleta uma semente, uma formiga, leva para sintetizar o princÃpio ativo no seu paÃs, faz um remédio e vende para os brasileiros que não recebem um tostão por royalties, patente e direitos. Está na hora de isso acabar", diz o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc.
» Ãudio: ouça entrevista com o ministro Carlos Minc
Segundo o ministro, apesar das dificuldades por conta de falta de efetivo nas fronteiras, o Brasil avançou muito na fiscalização contra a biopirataria. "Hoje, conseguimos um serviço de qualidade com o pessoal do sistema de inteligência do Instituto Nacional do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) e da PolÃcia Federal, mas ainda é necessário muito esforço conjunto para avançar", diz.
Ele afirmou que o Brasil estuda firmar um compromisso com os laboratórios estrangeiros envolvendo a polÃcia internacional (Interpol), na busca da criação de um código de ética que exija dessas empresas a compra de materias genéticos com uma espécie de selo nacional, que comprove a autorização do governo brasileiro e das comunidades tradicionais detentoras das propriedades deles. "Vamos apertar o cerco contra os responsáveis por depredar o nosso patrimônio genético", avisa.
O Ministério da Justiça é responsável por fiscalizar a entrada de organizações não governamentais estrangeiras, que têm como princÃpio a realização de pesquisas cientÃficas em solo brasileiro, a maioria na região amazônica. Há um mês, o órgão finalizou o Cadastro Nacional de Entidades de Utilidade Pública (CNEs) e comprovou que, de 99 cadastramentos, 71 não conseguiram comprovar a finalidade das atividades desenvolvidas, o local de atuação, além de representação legal. O mais grave foi a constatação da presença de estrangeiros que trabalham nesses órgãos sem condição jurÃdica adequada, ou seja ilegais. Informações como as que foram ignoradas pelas entidades são obrigatórias para que elas exerçam atividades no paÃs. Eu descobri um fator existente no veneno, mostrei que ele existia, fiz a sÃntese, fiz a farmacologia, mas não tinha para quem entregar o conhecimento no Brasil.
Sérgio Henrique Ferreira, pesquisador do departamento de farmacologia da USP
Ouça entrevista com o ministro Carlos Minc