Brasil
Dor revivida para crianças que precisam depor uma agressão
Crianças abusadas sexualmente no Brasil têm que depor até seis vezes durante o processo para responsabilizar o agressor. Especialistas investem em tecnologia que permite entrevistar vítimas de forma menos traumática
"Por favor, me deixa. Não me pergunta mais nada sobre isso. Eu queria esquecer."
O depoimento acima é de uma garota de 8 anos, está registrado em um processo da Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente de Goiânia (GO) e demonstra, de forma simples e direta, o resultado do constrangimento pelo qual passam crianças vítimas de abuso ou exploração sexual.
Obrigadas a reviver inúmeras vezes o que aconteceu, se quiserem uma apuração da polícia e a responsabilização do agressor pela Justiça, tendem a deixar o trauma guardado. No Brasil, meninos e meninas que denunciam violações desse tipo chegam a ser ouvidos até seis vezes.
A via-crúcis começa durante a notificação inicial - em delegacias ou conselhos tutelares -, segue pelo Instituto Médico Legal, passa por varas especializadas da infância e só termina nos tribunais. Pesquisa apresentada em simpósio internacional sobre o assunto, que terminou no dia 21, em Brasília, identificou 28 países que têm experiências de tomada especial de depoimento nesses casos (veja o quadro).
Pesquisador responsável pelo levantamento, Benedito Rodrigues dos Santos coloca o Brasil numa das piores posições. "Na Inglaterra, referência no assunto, a criança é ouvida uma vez apenas. Aqui, são quatro, cinco, até seis vezes", destaca.
Para ele, que é secretário-executivo do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e integrante da Secretaria Especial de Direitos Humanos, será necessário investir em tecnologia para modificar esse quadro e também vencer resistências dos agentes públicos envolvidos na questão, especialmente o Judiciário.
"Ainda existe muita antipatia com novos métodos por parte dos juízes", diz. Aos poucos, entretanto, o país tem implantando técnicas alternativas de escuta de crianças abusadas sexualmente. Um dos locais mais avançados é o Rio Grande do Sul, onde 14 municípios utilizam circuitos fechados de TV para tomar os depoimentos.
"Claro que há dificuldades, mas aos poucos essa cultura vai se disseminando. Em Porto Alegre, onde há seis anos o sistema funciona, a polícia já está aceitando não tomar o depoimento, ou tomar em conjunto com o Ministério Público", destaca o juiz José Antonio Daltoé Cezar, da comarca da capital rio-grandense.
O estado utiliza o circuito fechado de TV, em que o tomador do relato fica sozinho com a criança e com um ponto no ouvido, recebendo ajuda de outros profissionais. A tecnologia é a mais utilizada no mundo, por 61% dos 28 países que contam com escutas especiais para esse tipo de caso. No outro método, conhecido como câmara de Gesell, há uma parede espelhada, em que as autoridades ficam atrás dela, ouvindo o depoimento sem que o garoto ou garota saiba.
Exposição
"Ambos têm vantagens e desvantagens. Nós consideramos o circuito de TV melhor porque, além de ser mais barato, a criança é menos exposta, enquanto na câmara de Gesell não há um total resguardo, embora o processo corra em sigilo", afirma Benedito.
A localização da sala onde o depoimento é realizado foi outro ponto abordado no estudo do pesquisador. Grande parte dos espaços está na polícia ou no Judiciário. Referencial importante na questão, Cuba reservou um local especial no Executivo.
"É interessante você preparar essa sala e treinar também o profissional que vai conduzir a conversa, isso aumenta inexoravelmente as chances de um relato eficiente. Sou juiz há 20 anos, já ouvi muitas crianças e sei como é difícil. Elas não falam, ficam constrangidas, têm medo de comprometer a família, já que, na maioria das vezes, o abuso ocorre pelo pai ou padrasto. E a gente vai continuar trucidando essas pessoas que procuram por um direito? Que direito é esse?", questiona Daltoé Cezar.
Ao encorajar as crianças e conseguir bons depoimentos, destaca o magistrado, a técnica de escuta especial aumenta também as chances de responsabilização. Uma análise de 295 processos que correram em Porto Alegre entre 2003 e 2008 aponta condenações em 49% dos casos. "Quando as coisas são bem feitas, conseguimos punir", diz.
Ele menciona a estimativa de que apenas 10% dos casos vêm à tona. "Já é uma parcela tão pequena e se a gente ainda não conseguir dar um bom andamento a ela, fica complicado", adverte o juiz. Uma cartilha em forma de gibi foi preparada pelo governo do Rio Grande do Sul, intitulada Depoimento sem Dano, para preparar os pequenos que vão depor. Municípios de Goiás, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Ceará e Rondônia também estão iniciando experiências semelhantes.
Trauma que não acaba
Trecho de depoimento colhido no dia 10 de junho, em Porto Alegre (RS)
Depoente: D.P.R., 9 anos
[...]
Vítima: ...Eu não me lembro...
Agente: Que idade tu tinhas?
V: Quatro ou cinco anos.
A: Como era com o pai?
V: Era mais ou menos, ele me batia e batia nos meus irmãos.
[...]
A: Faz tempo que tu não vês teu pai?
V: Faz tempo e eu nem quero ver.
[...]
A: É ultima vez que tu vais falar sobre isso, tu estás aqui dentro da sala, não vai te encontrares com ele...
[...]
V: Ele tirou a minha roupa.
A: E o que mais?
V: (Suspiros)
A: Ele tocou teu corpo?
V: Sim
A: Que parte?
V: Atrás. (suspiros)
A: Como assim?
V: Com a mão.
[...]
A: E o que ele fez?
V: (chorando) Ele passou a mão em mim (choro).
A: Vamos dar um tempinho? A gente sabe que é difícil, fica tranquila, não precisa ter vergonha, pode chorar... A gente sabe que é difícil falar. Tu estás sendo muito corajosa...
[...]
Juiz (fala pelo ponto): Sai um pouquinho do foco para voltar depois...
[...]
A: Tu lembras que parte do teu corpo ele tocou?
V: (suspiros) Foi em todo o meu corpo.
[...]
A: É difícil, né?
V: É, é chato...
Tecnologia utilizada
61% Sistema de circuito fechado de TV
39% Câmara de Gesell
Onde são feitos os depoimentos
18% Ministério Público
46% Polícia e tribunais
11% Tribunal
7% ONGs
18% Poder Executivo
Fonte: Pesquisa Depoimento sem medo (?) %u2014 Culturas e práticas não revitimizantes, apresentada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos