Os 20 artigos que compõem um acordo firmado entre Brasil e Vaticano têm deixado os parlamentares da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados de cabelo em pé. Com a difÃcil incumbência de analisar o texto, os integrantes do colegiado decidiram retomar nesta terça-feira (14/7) as discussões iniciadas na terça-feira passada em audiência pública.
Ainda confusos sobre o objetivo do acordo e no que diz respeito a eventuais armadilhas da redação, a tendência é que os deputados peçam mais tempo para analisar o documento, que tramita em regime de urgência.
Especialistas ouvidos pelo Correio, na terceira e última reportagem da série sobre ensino religioso no paÃs, demonstraram preocupação com as entrelinhas da matéria, especialmente com um ou outro privilégio que possa ser retomado pela Igreja Católica.
"Sempre defendi que seria melhor não ratificar, em consonância com a tradição republicana, democrática, para que o Estado continue na linha laica", afirma Aldir Soriano, membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em São Paulo.
Os artigos relacionados a isenções fiscais são os que mais chamam a atenção do especialista. "Veja que a imunidade tributária para as igrejas já existe na Constituição Federal. Mas ao equiparar a pessoa jurÃdica a entidades filantrópicas, abre uma condição para eventual ampliação dessa imunidade", destaca Soriano. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foi procurada pela reportagem mas não respondeu.
O Ministério das Relações Exteriores (MRE) também não atendeu o pedido de entrevista feito pela reportagem. Um representante da pasta, que esteve na comissão, disse, durante a audiência pública, que o acordo não altera em nada a relação já vigente entre o governo e a Igreja Católica. "Tudo que está aqui figura na legislação brasileira", afirmou Cláudio Lins, do MRE, aos deputados. De acordo com Lins, o documento apenas reforça o que a Constituição Federal prevê. "Não cria nenhuma novidade", destacou.
Na contramão desse raciocÃnio, Roseli Fischmann, doutora em filosofia da educação e pesquisadora da Universidade de São Paulo, defende a inconstitucionalidade do acordo. "Nosso artigo 19 impede aliança de qualquer tipo com religião. Como o Vaticano é um Estado que representa uma religião, a católica, esse acordo viola a laicidade do Brasil", critica.
O deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) também se mostrou preocupado. "Sabemos que, dentro de qualquer religião, há o perigo do charlatanismo. Me pergunto se essa questão da imunidade fiscal não pode abrir espaço para mais charlatães".
Roberto Leão, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), também destaca sua insatisfação com o acordo. "Da forma como está, é pior que nossa legislação atual porque dá espaço ao proselitismo", diz Leão. Gabeira ressalta a necessidade de dirimir todas as dúvidas antes de votar o acordo. Da Comissão de Relações Exteriores, a matéria segue para o plenário da Casa.
O texto do acordo entre Brasil e Vaticano foi assinado em 2008, mas negociado desde 2006. A versão original do documento proposto pelo paÃs sede da Igreja Católica sofreu alterações nos dois anos de conversas com o Brasil sem que houvesse um debate com a sociedade. Foi mantido em sigilo até a cerimônia de assinatura, em Roma, que ocorreu a portas fechadas.
Outros paÃses de maioria católica já fecharam acordos semelhantes com o Vaticano. O Brasil era considerado prioritário, em virtude do tamanho da população. Tanto é que, na visita que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez ao papa Bento 16, dias depois de o acordo ser fechado, o pontÃfice fez questão de agradecer pessoalmente a Lula.
Ouça os especialistas Cláudio Lins e Roseli Fischmann explicando o acordo entre Brasil e Vaticano
Cláudio Lins, representante do ministro das Relações Exteriores, fala sobre o acordo Brasil-Vaticano