Documentos da Polícia Civil referentes à guerrilha do Araguaia são dados como perdidos pelo governo do Pará, que suspeita que eles tenham sido queimados há nove anos.
O acervo do Arquivo Central da polícia, em Belém, guardava, entre outros papéis alusivos à repressão aos guerrilheiros, atestados de conduta e de vida e residência emitidos por delegacias a moradores da região. Esses documentos não existem mais no acervo --o que foi comprovado após uma busca.
Os atestados permitiam que os cidadãos-posseiros pobres, na maioria- circulassem entre as localidades. Quando parados por militares, eles tinham que mostrar os documentos, sob risco de prisão.
Um ato do delegado-geral de Polícia Civil, João Nazareno Nascimento Moraes, na gestão do governador Almir Gabriel (PSDB), abriu caminho para a possível destruição. Em 19 de janeiro de 2000, ele assinou a instrução normativa 001/ 2000, "com o objetivo de estabelecer normas e traçar diretrizes acerca da conservação e do desfazimento de documentos do acervo do Arquivo Central".
Batizada pelo atual governo de Ana Júlia Carepa (PT) de "portaria Nero" (nome do imperador que incendiou Roma), a instrução determina o prazo de um a cinco anos para a "incineração ou destruição por meio mecânico" de documentos.
A reportagem obteve o original do atestado de José Alves da Silva, emitido em 11 de dezembro de 1973. No documento, o delegado atesta que, após pesquisar o arquivo do distrito de São João do Araguaia, nada encontrou que "desabone a conduta" do lavrador piauiense.
Há ainda o original do "atestado-de-vida-e-residência", de novembro de 1972, de Auta Gomes de Araújo, 40. Diz que ela vive "no povoado de São Domingos das Latas deste município a (sic) mais de dez anos".
Os papéis foram obtidos pela Casa Civil do governo do Pará, enviados por funcionários da Polícia Civil que os teriam desviado do Arquivo Central antes da destruição.
A Secretaria de Segurança Pública do Estado não informou se algum documento chegou a ser destruído. Segundo a Folha apurou, nada foi encontrado relativo à guerrilha nas buscas nos arquivos.
O vice-presidente da Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia, Sezostrys da Costa, lamentou o desaparecimento dos papéis. Com eles, poderia se comprovar que os moradores do Araguaia viveram uma espécie de estado de sítio e toque de recolher, com a proibição pelo Exército de as pessoas circularem livremente.
A entidade exige do governo indenizações aos cerca de 350 associados. No mês passado, 44 deles foram anistiados e serão ressarcidos pelas torturas.
Para o assessor da Casa Civil, Paulo Fonteles Filho, representante do governo estadual que busca as ossadas no Araguaia, os documentos confirmariam que "o aparato de segurança pública do Pará auxiliou na repressão à guerrilha".
"É muito estranho ter acontecido isso na mesma época em que, em outros Estados, também ocorreram destruições de arquivos da repressão militar. Foi uma ação criminosa do governo da época", disse.
Outro lado
João Nazareno Moraes, ex-delegado-geral de Polícia Civil do Pará entre 1999 e 2001, disse à Folha que mandou destruir só a documentação que "não tinha valor jurídico" ou "uso policial", como requerimentos de licenças médicas e contas de luz e água. "Quem disse isso para você está lhe aplicando uma mentira, é um canalha", disse o autor da instrução normativa sobre a suspeita de que os papéis tenham sido destruídos.
Paulo Câmara, à época secretário de Segurança Pública do Pará, disse não ter dado "muita pelota" ao assunto quando soube da ordem de destruição. "Não passou pela minha cabeça que houvesse qualquer coisa de valor (a ser destruída)."