As tão festejadas taxas nacionais que apontam 97,6% das crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos matriculados nas escolas escondem uma realidade perversa vivida por alguns grupos.
Estão fora dessas estatÃsticas meninos e meninas de comunidades indÃgenas ou quilombolas, que moram na região do semiárido brasileiro, com algum tipo de deficiência ou que residem nas periferias dos grandes centros urbanos.
Enquanto a média de crianças de até 10 anos analfabetas no paÃs é de 5,5%, no Nordeste o Ãndice mais que duplica, ficando em 12,8%. O risco de um garoto que mora em uma comunidade popular de grandes cidades e cursa a 4ª série estar defasado nos estudos é 16% maior que o de um morador de outros bairros.
Essa e outras iniquidades foram apontadas ontem (9/6) no relatório Situação da Infância e da Adolescência 2009, lançado pelo Fundo das Nações Unidas para a Criança (Unicef). A publicação de 180 páginas traz dados recentes mostrando como a educação melhorou nos últimos 15 anos, mas faz cortes para populações especÃficas, mais desfavorecidas em razão do local onde mora, cor da pele, ter ou não deficiência, entre outras variáveis (veja quadro).
Kelvin Clécio Aguiar se enquadra em duas situações de risco apontadas pelo documento. Viveu, até dois anos atrás, num dos estados mais pobres do paÃs, o PiauÃ, onde quase 20% da população de 15 a 17 anos estão fora da escola.
No Distrito Federal desde 2007, o menino foi morar com a mãe em um bairro pobre da cidade, outra situação vulnerável listada no estudo. Com muita sorte, se não reprovar mais, Kelvin conseguirá finalizar o ensino fundamental com 20 anos. Hoje, aos 16, está na 5ª série. ;No Piauà eu ajudava a minha avó na roça, faltava muito. Quando vim para cá, tentei levar a sério os estudos, mas tenho dificuldade em português;, conta o garoto.
O domÃnio da lÃngua também é o maior problema de Priscila Reis Lima, mas não o único. No ano passado, a menina de 12 anos que mora na Estrutural reprovou a 5ª série porque foi mal em matemática, inglês, geografia e história, além de português.
Na avaliação de Marie-Pierre Poirier, representante do Unicef no Brasil, casos como o de Kelvin e Priscila acabam esquecidos no meio de números gerais. ;Essas crianças estão invisÃveis nas estatÃsticas. A realidade dos moradores de periferias só é verificada em levantamentos sobre violência, mas pouco se olha para a questão educacional;, ressalta.
Precariedade
Mesma situação de invisibilidade, segundo Marie-Pierre, vivem os estudantes do campo, onde a defasagem idade-série atinge 41,4% dos alunos, o dobro da taxa nas escolas urbanas. Na Amazônia Legal, que reúne comunidades indÃgenas, quilombolas e ribeirinhas, há 90 mil adolescentes analfabetos e 160 mil crianças entre 7 e 14 anos fora da sala de aula.
O semiárido, que inclui parte de nove estados nordestinos e de Minas Gerais e do EspÃrito Santo, também sofre com a precariedade na educação. Lá, uma criança leva em média 11 anos para concluir o ensino fundamental, que deveria durar oito anos.
Negros e indÃgenas também sofrem com a exclusão. Enquanto 1,77% das crianças brancas de 7 a 14 anos estão fora da escola, entre os negros o Ãndice é de 3,28%; na população indÃgena, de 9,84%.
Aplicação de 8% do PIB
Entre outras recomendações feitas no relatório Situação da Infância e da Adolescência 2009, o Fundo das Nações Unidas para a Criança (Unicef) no Brasil defende a aplicação de 8% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação ; patamar superior aos 6% sugeridos pelo Ministério da Educação.
A definição do percentual, segundo a representante do Unicef no paÃs, Marie-Pierre Poirier, é baseada em experiências de paÃses como o Japão, a Coreia e a Irlanda. ;São exemplos de nações que elevaram os investimentos para vencer as dificuldades e, depois, reduziram o Ãndice;, explica. O dado mais recente dos gastos do Brasil em educação referem-se a 2007 e indicam aproximadamente 4,6% do PIB.
Outra recomendação feita pela entidade da ONU é a ampliação da escolaridade obrigatória. Hoje, essa etapa inclui apenas o ensino fundamental ; dos 7 aos 14 anos. O fundo recomenda, entretanto, que a educação infantil, voltada para crianças de 4 e 5 anos, e o ensino médio, para adolescentes dos 15 aos 17 anos, também integrem o perÃodo considerado obrigatório.
Uma Proposta de Emenda à Constituição, sob análise do Congresso Nacional, determina essa alteração. Mesmo que as recomendações sejam implementadas, avisa Maria de Salete Silva, coordenadora do Programa de Educação do Unicef, os resultados só serão notados a longo prazo. ;Mudanças radicais em educação têm resultados em ciclos semelhantes aos de estudo, de 15 ou 20 anos;, destaca. (RM)
Ouça podcast: com Marie-Pierre Poirier, representante do Unicef no Brasil