Mais que fórmulas matemáticas, datas históricas, composições quÃmicas ou regras gramaticais, os livros didáticos, a cada ano, introduzem em seu conteúdo discussões da atualidade. É assim com o racismo, a questão indÃgena, a desigualdade de gênero ou os direitos das pessoas com deficiência. O mesmo movimento, entretanto, não ocorreu ainda com o tema da diversidade sexual. Apesar de o debate sobre homofobia ter se fortalecido na sociedade, análise de uma amostra de 67 livros, escolhidos entre os 98 mais distribuÃdos pelo Ministério da Educação à s escolas públicas brasileiras, apontou que nenhuma obra trata do assunto. Por outro lado, em 25 dicionários usados em sala de aula, foram encontrados termos considerados pejorativos.
A conclusão é do estudo Qual a diversidade sexual dos livros didáticos brasileiros?, realizado entre 2007 e 2008 pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) com financiamento do Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde. O resultado do levantamento, divulgado ontem, se transformou em um livro, que será distribuÃdo pela pasta. Na avaliação da doutora em psicologia Tatiana Lionço, que coordenou a pesquisa, o dado mais preocupante é a ausência do debate. ;Verificamos o silêncio sobre a diversidade sexual e a naturalização da heterossexualidade, mas não há homofobia;, explica. Quanto aos dicionários, a pesquisadora destaca termos pejorativos, que num sentido mais amplo de interpretação podem ser considerados homofóbicos.
Alguns exemplos estão em verbetes como lésbica, cujo significado vem acompanhado de termos como sapatão e mulher-macho. Travesti aparece comumente como farsante, homem que se veste de mulher, entre outras definições. ;São expressões usuais, mas que reafirmam preconceitos. E um dos maiores problemas da homofobia é a banalização;, afirma Tatiana. A socióloga Vera Simonetti, coordenadora da ONG Ecos ; Comunicação em Sexualidade, critica a forma como geralmente o tema aparece na escola. ;Quando o assunto se torna visÃvel, com frequência é pela via da chacota, do desprezo, da violência. A verdade é que toda a instituição ; funcionários, professores, alunos ; não sabe como agir diante da homossexualidade de um integrante da comunidade escolar;, diz ela.
Sem influência
Um dos mitos que precisa ser derrubado, segundo Lula Ramires, mestre em educação pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu tese sobre a homofobia no ensino médio, é o de que falar de diversidade sexual influencia a criança e o jovem. ;Como se alguém pudesse se tornar gay ou lésbica por sugestão de terceiros;, ironiza. Segundo ele, uma medida que pode ajudar a introduzir o tema na sala de aula é a qualificação dos docentes. ;Muitos dizem que nunca trataram do assunto na faculdade, que não sabem abordar;, conta Ramires, que por meio da ONG Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor (Corsa) já deu capacitação a professores na área.
O treinamento desses profissionais faz parte de uma estratégia do Ministério da Educação (MEC), de acordo com a assessoria de imprensa. Segundo a pasta, cerca de 20 mil professores já foram formados ou estão em fase de capacitação. A ideia é dar suporte, em 2009, a 13.360 docentes dentro do programa Rede de Educação para a Diversidade. Além disso, está em curso um outro projeto encampado pelo ministério, o Escola sem Homofobia. No inÃcio deste mês, foi publicada uma resolução pelo Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação estabelecendo diretrizes para a produção de material didático que aborde a diversidade sexual.
Não há receita de bolo, avisa Ramires, quando o assunto é como levantar o tema da diversidade sexual nas escolas. Mas Vera destaca o que pode ser um bom começo. ;Uma maneira de trabalhar, inicialmente, o assunto com os alunos é questionar imediatamente após surgir uma brincadeira sobre algum colega que tenha um jeito diferente de ser. Mesmo que seja só uma piadinha;, recomenda a socióloga. Segundo ela, a atitude discriminatória parte, muitas vezes, do próprio professor. ;Há estudantes que se queixam por serem chamados em classe por quem deveria zelar pelo respeito a todo mundo, a educadora e o educador, de bambi, em plena sala de aula, na frente de todo mundo;, critica.
Um exemplo de correção
Em meio aos 67 livros didáticos analisados, apenas um tratou do tema da diversidade sexual, ainda que de forma superficial e indireta, em duas páginas de exercÃcios. A obra, utilizada por alunos da 7ª série, conta a história do filme Billy Elliot, em que um garoto decide, contra a vontade da famÃlia, dançar balé. Aos alunos, são dirigidas perguntas sobre a reação de parentes e conhecidos, o contexto social em que o personagem vivia, a diferenciação entre atividades tidas como masculinas e femininas. Tatiana Lionço, que coordenou o levantamento, não questiona a abordagem, mas ressalta o número Ãnfimo ; uma publicação, com um exercÃcio apenas ; de livros abordando a temática.
Quanto ao melhor momento de começar a trabalhar o assunto em sala de aula, a socióloga Vera Simonetti, coordenadora da ONG Ecos ; Comunicação em Sexualidade, é direta. ;Pode parecer ousado mas, uma educação baseada na igualdade de gênero tem que começar, na verdade, desde bem criancinha. Quantas creches não dividem brinquedos em brinquedos de menina e de menino, isso é coisa de menina, isso é de menino? Esse trabalho teria que ser dirigido não só às criancinhas, como também às pessoas que ficarão com as criancinhas durante o horário escolar;, afirma a especialista.
Silêncio
Para Tatiana, existem contextos, nos livros didáticos, propÃcios para a discussão da diversidade sexual, mas que não são aproveitados. ;As peculiaridades das famÃlias modernas, por exemplo, aparecem em modelos chefiados pela mulher, pelos avós. Ou seja, esse seria um tópico onde poderia se trabalhar o tema da diversidade sexual, mas o que vemos é um silêncio;, diz a pesquisadora.