Três destinos estão reservados aos doentes mentais que cometem crimes no Brasil. Ciclos intermináveis de internações, suicídio ou a sobrevivência em prisão perpétua. Jaime, Antonio e Almerindo, cada um com sua sina, contam a realidade macabra dos manicômios judiciários do país. São os protagonistas do documentário A casa dos mortos, que será lançado em Brasília na próxima sexta-feira, durante o festival É Tudo Verdade. O filme de 24 minutos é narrado pela voz imponente de Bubu, um escritor com 12 internações em manicômios, que recita um poema de autoria própria. Ao fim de cada estrofe, a explicação sobre onde ocorrem ;mortes sem batidas de sinos;, ;overdoses usuais e ditas legais; e ;vidas sem câmbio lá fora;. ;É que aqui é a casa dos mortos!”, esclarece Bubu.
Mortos fisicamente pelas condições desumanas a que são submetidos, ou defuntos sociais, quando conseguem sobreviver lá dentro mas perdem qualquer vínculo com o mundo exterior, cerca de 4.500 pessoas estão abrigadas nos manicômios judiciários no país. Muitas como Almerindo, há mais de 30 anos no Hospital de Custódia e Tratamento (HCTP) de Salvador (BA), por ter atirado uma pedra numa pessoa e roubado a bicicleta dela, em seguida recuperada.
A antropóloga Debora Diniz, diretora do documentário, ressalta o objetivo esclarecedor da fita. ;Queremos mostrar que essa realidade existe e que se configura numa violência aos direitos humanos dessas pessoas. Da forma como fizemos, mostrando o manicômio judiciário sob a ótica do interno, retratamos quase que o mundo real;, explica.
Os manicômios judiciários são, na avaliação de Debora, o grande desafio da reforma psiquiátrica brasileira, que completa oito anos em 2009. Uma das grandes polêmicas da área é quem deve se responsabilizar pelos doentes mentais infratores. ;Cria-se esse limbo. A área da saúde não quer se meter porque o problema é de segurança pública, que não consegue oferecer o mínimo de tratamento adequado para esses pacientes;, afirma Carmen Silvia de Moraes Barros, coordenadora do núcleo de situação carcerária da Defensoria Pública de São Paulo.
Em muitos manicômios judiciários do país, relata a defensora, não há nem sinais de um hospital ; embora eles devessem funcionar como tal. ;Em Taubaté, por exemplo, são celas, com portas de ferro e janelinhas que abrem.;
Na avaliação de Debora, transferir a responsabilidade do tratamento à área da saúde é uma das tentativas interessantes para mudar a realidade dos manicômios judiciários. ;Seria a transmissão do mundo da medicalização para o mundo social. O Almerindo vive há 30 anos sem decidir o que tomar no café. Então, o quadro é muito grave. E disso surge uma pergunta: onde colocar o Almerindo?;, questiona a antropóloga.
A falta de tratamento adequado, de terapias, atividades de cunho social e trabalho de incentivo à reaproximação familiar levam, inevitavelmente, à instituição não oficial de algo proibido pela Constituição. ;A prisão perpétua acaba ocorrendo nesse cenário;, destaca Debora.
Após a exibição de A casa dos mortos, haverá debate sobre o assunto com Debora e a diretora de produção do documentário, Fabiana Paranhos.
» FESTIVAL É TUDO VERDADE
Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Tc. 2, Lt. 22). Até 26 de abril. Entrada franca. Para assistir às exibições dos documentários, basta pegar os bilhetes com uma hora de antecedência, distribuídos no local. A casa dos mortos será exibido no dia 24, sexta-feira, às 20h30, junto com dois outros filmes.
Poema A casa dos mortos, de Bubu
A casa dos mortos
das mortes sem batidas de sino.
; Cena 1 deste filme-documentário
do mesmo destino de sempre;
é que aqui é a casa dos mortos!
***
A casa dos mortos
das overdoses usuais e ditas legais.
; Cena 2 deste filme-documentário
do mesmo destino de sempre;
é que aqui é a casa dos mortos!
***
A casa dos mortos
das vidas sem câmbios lá fora.
; Cena 3 deste filme-documentário
do mesmo destino de sempre;
é que aqui é a casa dos mortos!
***
Prá começo de conversa, são 3 cenas,
são 3 cenas anteriores e posteriores
às minhas 12 passagens
pelas casas dos mortos,
que são os manicômios;
; tenho ; digamos assim ! ;
surtos de loucura existencial brejinhótica,
relativos à minha cidade natal,
Oliveira dos Brejinhos ; Bahia ; Brasil;
voltando às cenas:
... cenas que, por si sós,
deveriam envergonhar os ditames legais
das processualísticas penais e manicomiais;
mas, aqui é a realidade manicomial!
***
Pois, bem: são 3 cenas,
são três cenas repetidas e repetitivas
de um ritual satânico-sacro
com poucos equivalentes comparados de terror,
cujo estoque self-made in world
é o medicamentoso entupir de remédios,
o qual se esquece de que
A Era Prozac
das pílulas da felicidade
não produz A Era da Felicidade
da nossa almática essência de liberdade;
mas, aqui é a realidade manicomial!
***
E, ainda sobre as 3 cenas:
são 3 cenas de um mesmo filme-documentário:
Cena 1, das mortes sem batidas de sino;
Cena 2, das overdoses usuais e ditas legais;
Cena 3, das vidas sem câmbios lá fora
; que se reescrevam, então,
Os Infernos de Dante Alighieri;
mas, aqui é a realidade manicomial!
***
Reporto-me às palavras de um douto inconteste,
um doutor que rompeu o silêncio,
o jornalista Jânio de Freitas,
do jornal A Folha de São Paulo:
"A psiquiatria é a mais atrasada das ciências"
; Parafraseio Jânio de Freitas
porque a casa dos mortos,
que é a metáfora arquitetônica
pela qual designo a psiquiatria,
pede que se fale
contra si mesma!
***
E, por falar, também, em lucidez,
sou lúcido e translúcido:
a colunista-articulista Danuza Leão,
no jornal baiano A Tarde, explica:
"Lucidez é reconhecer
a sua própria realidade,
mesmo que isso lhe traga sofrimentos."
Mas, qual, ó Bubu:
isto aqui é a casa dos mortos,
e, na casa dos mortos,
quem tem um olho é rei,
porque esta é a máxima e a práxis
da casa dos mortos.
***
Hospital São Vicente de Paulo /
Taguatinga ; Distrito Federal ; Brasil, abril de 1995:
o laudo a meu respeito (eu Bubu)
é categórico e afirma sinteticamente:
"O senhor Bubu é perfeita e plenamente lúcido".
Mas, é que lá a psiquiatria é Psiquiatria Federal,
com P maiúsculo,
de propriedade patenteada
e de panteão da civilização;
enquanto que, aqui na Bahia,
a psiquiatria é psiquiatria estadual,
com p minúsculo,
de pôrra-louquice
e de prostíbulo do conceito clínico
(não custa nada afirmar:
eu Bubu fui absolvido
pela Psiquiatria Federal,
e eu Bubu fui condenado
pela psiquiatria estadual
; eis o mote da minha história)
***
Isto é um veredicto!
; tomara que fosse um ultimatum
à casa dos mortos!