Jornal Correio Braziliense

Brasil

Invasões em série do MST, lentidão da Justiça e do governo fazem o Pará virar um barril de pólvora prestes a explodir

;

Marabá (PA) ; Em uma área com cerca de 80 mil km² no sudeste do Pará, entre as cidades de Marabá e Redenção, trava-se uma guerra pela terra que envolve camponeses desempregados, madeireiros, fazendeiros, movimentos pró-reforma agrária e uma turba composta por ex-garimpeiros, aventureiros e migrantes desocupados em geral. Equivalente às áreas da Paraíba e Alagoas, a região já foi considerada o eldorado brasileiro na década de 1980, com o advento do gigantesco garimpo de ouro em Serra Pelada. Hoje é palco de um conflito onde, de um lado, estão os megaprojetos agropecuários que precisam de segurança pesada para proteger os rebanhos e as instalações das fazendas e, de outro, grupos de sem-terra armados de espingardas e facões que não receiam ameaçar funcionários e matar gado. Nem mesmo a riqueza gerada atualmente pela exploração industrial de toneladas de minérios e a produção de carne bovina que pesam na balança comercial do país evitam os conflitos em série que a lentidão da Justiça e dos governos não consegue resolver. Somente na Vara Agrária de Marabá, a mais antiga da região, estão sendo julgadas 210 ações de reintegração de posse impetradas por várias agropecuárias. Em alguns casos, a Justiça deu ganho de causa aos fazendeiros e concedeu decisões liminares exigindo a desocupação imediata do imóvel. Mas existe uma fila com mais de mil ordens judiciais para a retirada de invasões em todo o estado administrada lentamente pelo governo estadual. O foco das invasões concentra-se nas fazendas da Agropecuária Santa Bárbara Xinguara, pertencente ao Grupo Opportunity. A demora do governo do Pará em cumprir as ordens de reintegração de posse levou a promotora de Justiça da Vara Agrária de Castanhal, Ana Maria Magalhães de Carvalho, a fazer recomendações por escrito ao secretário de Segurança, Geraldo de Araújo, e ao procurador-geral Ibrahin das Mercês Rocha, para que atendam ao comando judicial de várias determinações de reintegração de posse. No ofício, datado de 17 de março, a promotora adverte que os dois podem ser responsabilizados por crimes como prevaricação e improbidade administrativa. O governo do Pará alega falta de estrutura na Polícia Militar para a retirada dos invasores. Disputa As decisões judiciais para a reintegração de posse de fazendas apontam a orientação de três organizações para as invasões: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) e Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri). Além das bandeiras dessas entidades, erguidas em cada entrada dos acampamentos, as ocupações também são realizadas pelos posseiros sem ;filiação; a qualquer organização, mas que também reivindicam uma gleba. Essas características transformaram a faixa de terra cortada no sentido norte-sul pela rodovia PA-150, onde estão os principais acampamentos em grandes fazendas, no principal foco do conflito agrário brasileiro. ;Essa cultura de ocupação que vem dos anos 1980 já anda sozinha e transforma a região onde vivem os remanescentes dos garimpos e da construção da hidrelétrica de Tucuruí em um caldeirão permanente;, explica Luciano Brunet, superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) por dois anos em Marabá e hoje trabalhando em Santarém. Gado abatido Durante cinco dias, o Correio percorreu a região, visitou três acampamentos e várias propriedades ocupadas. O maior complexo pecuário invadido pelos sem-terra no sudeste do Pará é o da Agropecuária Santa Bárbara. São 13 fazendas, onde milhares de homens, mulheres e crianças cortaram as cercas e levantaram centenas de barracos de madeira e palha nos pastos. Os invasores ocupam locais diferentes da mesma fazenda e passaram a matar cabeças de gado. O coordenador do MST em Marabá, Charles Trocate, admite que alguns bois são abatidos para abastecer o acampamento. ;Isso é feito excepcionalmente para matar a fome coletiva e não para vender;, alega. Ele acusa grupos rivais de roubar gado das propriedades para venda no mercado clandestino da região. Conta que informou à Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) a retirada o gado. Considerado um dos principais quadros do MST nacional, Trocate tem sólida formação política e coordena o movimento na região. ;Estamos em uma encruzilhada. Temos que resistir para lutar contra o grupo Santa Bárbara, inclusive na Justiça, e ao mesmo tempo impedir a ação de posseiros;, observa o líder. Os dirigentes da Fetraf e Fetagri negam que seu grupo mate gado das fazendas invadidas e também acusam os posseiros independentes. Há duas semanas, Trocate coordenou a ocupação da sede e das demais instalações da Fazenda Maria Bonita, ocupada por vários grupos de sem-terra há oito meses. Ao entrar no imóvel, expulsaram os funcionários e passaram a tomar conta do gado. Na propriedade de 3,6 mil hectares estavam sendo criadas 8 mil cabeças de gado. No fim de semana que passaram na área, os camponeses mataram pelo menos três cabeças e deixaram as marcas do sangue no curral. Utilizavam os cavalos da propriedade para tourear as vacas de leite. Em dois dias, quebraram tratores e picharam as paredes da baia com a sigla MST. Ao deixar as casas dos funcionários da fazenda, os camponeses levaram fogões e outros utensílios domésticos. Um balde cheio de carne que sobrou dos bois abatidos não foi esquecido. A invasão da sede serviu para pressionar o governo a negociar a desapropriação da fazenda que faz parte do maior complexo pecuário do mundo. Armados Há duas semanas, a PM prendeu 12 sem-terra armados com oito espingardas de grosso calibre, um revólver e um binóculo. O grupo está preso em Marabá. Em fevereiro, outro grupo já tinha sido detido com a mesma quantidade de espingardas, mas somente as armas foram recolhidas pela polícia. Com os camponeses detidos a PM também apreendeu rádios furtados das fazendas. Os sem-terra presos alegaram na polícia que estavam armados para expulsar os posseiros não filiados ao MST ou à Fetrafi que estavam acampados na mesma fazenda ocupada por eles. Na Fazenda Espírito Santo, em Xinguara, também do grupo Santa Bárbara, 220 famílias ocupam a propriedade desde 27 de fevereiro. Ao acampamento deram o nome do poeta russo Wladimir Maiakóvski e ergueram bandeiras do MST e da Via Campesina, a entidade latino americana pró-reforma agrária. Os vaqueiros da fazenda localizaram pelo menos quatro carcaças de gado com a carne retirada. As vacas são cercadas próximo aos cantos das cercas e mortas com tiros de espingardas e carabinas. Quando estavam construindo os barracos, os camponeses tomaram um caminhão e obrigaram o motorista a carregar palhas e madeira para as choupanas. Seguranças da empresa filmaram a tomada do caminhão pelo grupo. O filme faz parte do processo de reintegração impetrado pela empresa. A decisão tomada pela cúpula das três entidades de trabalhadores de invadir as fazendas do grupo Santa Bárbara foi cirúrgica. Tanto o MST quanto a Fetagri e a Fetraf aproveitaram o apoio político que recebem da governadora Ana Júlia Carepa, do PT, para escolher as propriedades, alegando que o Instituto de Terras do Estado impetrou ação civil pública questionando a compra do complexo de fazendas pelo grupo dirigido pelo banqueiro Daniel Dantas. O Iterpa alega quebra de contrato do aforamento da área pelo antigo proprietário, Benedito Mutran. Mas o mesmo instituto emitiu parecer favorável à emissão de título definitivo em dezembro de 2006. Prejuízo O grupo Santa Bárbara ainda não calculou precisamente quanto perdeu até agora com a invasão de 13 das suas 141 propriedades rurais, que juntas têm pelo menos 350 mil hectares de pasto no sul e sudeste do Pará. Os administradores estimam, porém, que cerca de 2 mil cabeças de nelore desapareceram nesse período e culpam os sem-terra pelo prejuízo. A Federação da Agricultura do Estado do Pará (Faepa) projeta em R$ 80 milhões a sangria do patrimônio da empresa. O rebanho estimado era de 500 mil cabeças de gado no primeiro semestre de 2008 quando começaram as invasões. A empresa acusa as organizações de sem-terra de sequestro e cárcere privado de funcionários, matança de gado, destruição de cercas e desmatamento ilegal. Somente as fazendas ocupadas formam, juntas, um pasto de 50 mil hectares, onde existiam 50 mil cabeças antes da primeira invasão, em julho do ano passado. A produção de algumas propriedades está paralisada. É o que ocorre na Fazenda Cedro, onde as plantações de cacau e milho não podem ser cuidadas. Lá funcionava um dos mais modernos laboratórios de inseminação artificial do país, que também parou de funcionar depois que a propriedade foi invadida. As invasões das fazendas do grupo Santa Bárbara se concentraram neste ano. Das 13 ocupações, 11 ocorreram entre janeiro e março. O complexo com 50 mil matrizes prontas para a inseminação artificial, o abate de 110 mil cabeças por ano e o nascimento de outros 150 mil animais a cada 12 meses também estão comprometidos. ;O MST e os outros grupos fazem acordo para invadir as fazendas e jogam a culpa pela depredação e matança de gado uns nos outros;, denuncia Oscar Boller, administrador da Santa Bárbara. Na invasão da Fazenda Espírito Santo, no fim de fevereiro, ele precisou de ajuda da polícia para retirar a mulher da sede.