Por quase sete horas, o ministro Marco Aurélio Mello defendeu ontem, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), a anulação da demarcação da reserva indÃgena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Em dezembro, ele havia interrompido o julgamento com um pedido de vista, depois de oito votos favoráveis à manutenção dos 1,7 milhão de hectares em forma contÃnua. Ontem, a expectativa dos Ãndios que vivem na região era comemorar a palavra final do presidente da Corte, Gilmar Mendes. Mas as 120 páginas de um minucioso e repetitivo voto adiaram para hoje a decisão. Depois de Marco Aurélio, a palavra passou para Celso de Mello, que acompanhou o relator Carlos Ayres Britto. Dessa forma, o placar do julgamento ficou com nove votos a favor da demarcação contÃnua das terras e um contrário ; de Marco Aurélio.
Na primeira parte de seu voto-vista, o ministro não entrou no mérito da ação popular que contesta a demarcação da reserva. Preferiu falar sobre supostos erros cometidos tanto no processo administrativo, que culminou no laudo antropológico da Fundação Nacional do Ãndio (Funai), quanto no judicial. ;O processo apresenta vÃcios desde o laudo antropológico.; Segundo Marco Aurélio, o trabalho dos técnicos, iniciado em 1977, é falho e parcial. Ele criticou o fato de o documento ser subscrito por apenas uma pessoa, a antropóloga Maria Guiomar de Melo, e afirmou, com base em informações do processo, que motoristas do grupo de pesquisadores foram citados indevidamente como consultores agrÃcolas. Também afirmou que o laudo não é isento, já que pessoas ligadas ao Conselho IndÃgena de Roraima (CIR) e ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão da Igreja Católica, deram consultoria. Marco Aurélio chegou a brincar, dizendo que esperava não ser excomungado por isso.
O presidente da Funai, Márcio Meira, rebateu laconicamente a crÃtica: ;Não temos nenhuma dúvida sobre o trabalho feito;. A Funai também foi criticada pelo presidente do STF, Gilmar Mendes. O ministro afirmou que o julgamento da Raposa Serra do Sol vai nortear as próximas demarcações de terra. ;O processo de demarcação é muito sério para ser tratado apenas pela Funai;, concluiu. ;Discordo. Se fosse assim, o laudo preparado pela Funai não teria nove dos oito votos;, rebateu Meira.
Falhas judiciais
Para Marco Aurélio, o processo judicial também está repleto de falhas. A afirmação irritou o relator Ayres Britto, que chegou a discutir com o colega (leia abaixo). Segundo Marco Aurélio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Justiça na época da homologação da reserva (2005), Márcio Thomaz Bastos, deveriam ter sido ouvidos pela Justiça. Para ele, não bastou a presença do advogado-geral da União, José Antônio Toffoli. O ministro ressaltou que Ãndios contrários à demarcação em área contÃnua também precisariam ter prestado depoimento, assim como o governo de Roraima.
Sorridente, o representante dos produtores de arroz que ocupam a Raposa Serra do Sol, Paulo César Quartiero, concordava com a cabeça enquanto o ministro falava. Desde terça-feira, ele já havia informado à imprensa que esperava uma mudança nos rumos do julgamento. Chegou a fazer graça, dizendo que, se retirado da reserva, iria virar sem-terra. O ex-prefeito de Pacaraima (RR) pelo DEM só demonstrou nervosismo quando Ayres Britto rebateu Marco Aurélio Mello. O sorriso sumiu do rosto.
Ao comentar o mérito da questão, Marco Aurélio apresentou várias alegações: desde o perigo de deixar com os Ãndios as fronteiras ; o que ameaçaria, na sua opinião, a defesa nacional ; à possibilidade de separatismo e da criação de uma nação indÃgena. ;A polÃtica indÃgena nacional sempre foi dirigida à integração. Como, em pleno século 21, com os avanços culturais, cogita-se o isolamento da população indÃgena?;, questionou. E afirmou que defender um território onde não-Ãndios são proibidos de entrar é o mesmo que promover um apartheid.
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