Jornal Correio Braziliense

Brasil

Monteiro Lobato analisa de que forma a obra infantil contribuiu para mudança de paradigmas na sociedade brasileira

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;Eu sou a Independência.; Muito antes que norte-americanas queimassem sutiãs em frente ao prédio do Senado ou Leila Diniz exibisse em Ipanema a barriga de seis meses de gravidez, uma criaturinha espevitada e sem papas na língua já anunciava a quem quer que fosse que era dona de seu próprio ; e arrebitado ; nariz. Em 1935, Emília, boneca feita de trapos e retrós, se autodeclarava não só independente, mas a própria personificação da independência. Um conceito tão moderno numa época em que as brasileiras haviam recém-adquirido o poder de votar só poderia ter saído da pena do mais visionário de nossos escritores: José Bento Monteiro Lobato. Autor de clássicos como Urupês e Cidades Mortas, o paulista de Taubaté tornou-se mais popular com as histórias infantis desenroladas no idílico Sítio do Picapau Amarelo, ponto de partida para locais tão distantes quanto a Ilha de Creta, na Grécia, e o Reino das Águas Claras, situado em algum lugar da imaginação. Sessenta anos depois da morte do escritor, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) lançou Monterio Lobato, livro a livro, publicação que disseca a obra infantil de Lobato, destacando não só o aspecto literário, mas as inovações e contribuições do autor para mudanças de paradigmas na própria sociedade brasileira. O embrião do livro foi o projeto Monteiro Lobato (1882-1948) e outros modernismos brasileiros, desenvolvido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) por Marisa Lajolo, organizadora da obra publicada pela Editora Unesp. Mas, como a professora faz questão de destacar, embora nascido no ambiente universitário, o livro abre mão do palavreado técnico e do estilo ensaísta, bem a gosto de Lobato, para quem a linguagem tinha de ser ;cristalina como água de pote;. A crítica aos preciosismos gramaticais, tão em voga nas primeiras décadas do século 20, é um dos aspectos tratados em Monteiro Lobato, livro a livro. Pela boca de seus personagens, Monteiro Lobato chegava a ridicularizar as armadilhas da língua portuguesa e dos discípulos fiéis das regras da gramática. De acordo com Marisa Lajolo, Reinações de Narizinho, publicado em 1931, é um marco inaugural da coloquialidade e da fluência do português. ;Através do Doutor Caramujo, a linguagem pedante, presunçosa e pretensiosa, distante da cotidiana, é satirizada;, observa a professora. Narizinho tem uma crise de riso quando o médico do Reino das Águas Claras diagnostica Emília: ;A senhora condessa está sofrendo duma anemia macelar no pernil barrigóide esquerdo;. Traduzindo: o recheio de macela da perninha da boneca havia esvaziado. Para o terror dos guardiães do vernáculo, Lobato também inovou ao brincar com as palavras, inventando expressões como ;Vossa Cavalência; (modo como Emília chamava seu cavalinho de pau), borboletograma (recado escrito na asa de uma borboleta) e inspetoradas (agressões feitas pelo inspetor). ;Na oficina de Lobato, a língua portuguesa é tratada como matéria maleável;, ressalta Marisa Lajolo. Nacionalismo Foi por meio de seus personagens que Monteiro Lobato também comprou briga com o poder. Jeca Tatu, personagem dos artigos Velha Praga e Urupês (ainda não o livro), publicados em 1914 no jornal O Estado de S. Paulo, não era apenas um matuto preguiçoso. Era, sim, a denúncia de um país cuja agricultura estava atrasada, quase medieval. Ao criar heróis ; e anti-heróis ; com a cara do Brasil, o autor rompeu com mais uma tradição à moda da época: copiar tudo o que vinha de fora, bem a gosto do colonialismo que ainda imperava um século depois da Independência. A figurinha eleita por Lobato para valorizar, entre os pequenos, a cultura do país, foi o Saci, que vez ou outra aparece nas terras de Dona Benta para fazer travessuras. Ao longo das novas impressões da obra, o escritor fez inúmeras modificações, seja para amenizar passagens assustadoras ou ressaltar o nacionalismo. Na primeira edição, a abertura de O Saci citava periquitos, pombinhos e laranjeiras. Mas também havia uma fada, que foi abolida na terceira versão do livro. ;Talvez tenha incomodado a Lobato a presença de um personagem tão típico da tradição literária infantil europeia. Para quem buscava o novo, o genuinamente brasileiro, poderia parecer um retrocesso o recurso a personagens do imaginário europeu;, observa Evandro do Carmo Camargo, que faz doutorado na Unicamp sobre a produção de Lobato para a versão vespertina do jornal O Estado de S. Paulo. A sabedoria popular não saía só das histórias povoadas pelos seres folclóricos. No Sítio, Tia Nastácia, além de preparar seus famosos quitutes, era a própria voz do povo. Uma personagem que rendeu a Monteiro Lobato críticas por um suposto racismo, graças a comentários, geralmente da Emília, do tipo ;negra beiçuda; e ;Deus que te marcou, alguma coisa em ti achou;. Tâmara Abreu, doutoranda na Unicamp em Teoria e História Literária, diz, porém, que a cozinheira ocupou importantes papéis na obra de Lobato e que, em A reforma da natureza, o escritor faz ;justiça social; a ela. Na história, Tia Nastácia sai da cozinha e vira ;governante da humanidade; porque, ao lado de Dona Benta, de acordo com o Rei Carol, é a ;mais humana do mundo e também grande estadista;. A própria Emília, cujas asneiras geralmente eram voltadas à cozinheira, redime-se em suas memórias. ;Tia Nastácia, essa é a ignorância em pessoa. Isto é; ignorante, propriamente, não. Ciência e mais coisas dos livros, isso ela ignora completamente. Mas nas coisas práticas da vida, é uma verdadeira sábia.; Seguindo a linha de raciocínio da época ; menos de quatro décadas após a abolição da escravatura ;, a bonequinha questiona: ;Só não compreendo por que Deus faz uma criatura tão boa e prestimosa nascer preto como o carvão;. É ela mesma quem desfaz o enigma, dando uma resposta a quem acusa Lobato de racista: ;É verdade que as jabuticabas, as amoras, os maracujás também são pretos. Isso me leva a crer que a tal de cor preta é uma coisa que só desmerece as pessoas aqui neste mundo. Lá em cima não há essas diferenças de cor. Se houvesse, como havia de ser preta a jabuticaba, que para mim é a rainha das frutas?;. Entrevista com Marisa Lajolo: novos modelos Professora da Unicamp e recém-nomeada secretária de Educação de Atibaia (SP), a escritora Marisa Lajolo é apaixonada por Monteiro Lobato. Além de organizar, juntamente com João Luis Ceccantini, a obra Monteiro Lobato Livro a Livro, ela é organizadora de um projeto que reúne documentos, muitos deles, até então inéditos, relacionados ao autor do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Em entrevista ao Correio, ela diz que o escritor mudou a sociedade brasileira e, ainda na década de 1930, já era um pré-feminista. Até Monteiro Lobato, como era a literatura infantil brasileira? Acredito que Lobato inova a literatura ao romper com a imagem de crianças obedientes e passivas, como era a maioria das personagens da litetratura infantil brasileira pré-Lobato. Quais os principais paradigmas quebrados por ele? Creio que Lobato quebra o paradigma de tratar os leitores infantis como pequenos idiotas. Emília se autodeclarou ;a Independência;. A bonequinha é uma espécie de pré-feminista? A obra infantil lobatiana apresenta uma série de mulheres excepcionais: Dona Benta e Tia Nastácia, por exemplo, são as figuras que vão pôr em ordem uma Europa dilacerada pela guerra. Além disso, em vários momentos diferentes, personagens verbalizam imagens de uma nova mulher... Não sei, assim, se o estrelato do pré-feminismo é da Emília, ou da obra como um todo. Hoje, no mundo do ;politicamente correto;, os comentários da Emília, que xingava Tia Nastácia de ;negra beiçuda;, podem ser mal interpretados? Sim, os comentários de Emília podem ser interpretados de maneiras diferentes por diferentes leitores. Como, aliás, tudo em qualquer livro tem diferentes significados para diferentes leitores. Eu creio que, ao contrário do que creem os patrulheiros de plantão, os xingamentos de Emília acabam deixando os leitores indignados com ela!