A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de abrir caminho para a libertação de pessoas com prisão preventiva ou provisória e até de condenados em segunda instância que ainda tenham possibilidade de recursos já nasceu sob o signo da polêmica: em uma sessão extremamente tensa em 5 de fevereiro, um habeas corpus para um agricultor condenado por tentativa de homicídio foi aprovado por sete votos a quatro. Na época, houve até bate-boca entre os normalmente contidos ; mesmo que apenas devido à cultura de rígida formalidade que impera na Corte ; ministros. Na última quinta-feira, seguindo a decisão tomada no início do mês, o STF determinou a libertação de cinco presos ; condenados por tentativa de estupro, estelionato, roubo qualificado e apropriação de bens e rendas públicas. A medida agravou as divergências crescentes nos meios jurídicos do país. Chovem críticas contra a tese. Ontem, o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, defendeu o entendimento da mais alta Corte brasileira.
Ao Correio, o ministro disse que o STF não está interferindo nas prisões provisórias. Ele lembrou, no entanto, que os juízes precisarão refletir mais antes de mandar um condenado que ainda esteja aguardando a análise de recursos para trás das grades. E ressaltou que, para mandar prender o réu, é preciso haver motivos para embasar a decisão, como risco de destruição de provas ou de fuga. ;Não vejo fundamento (para as críticas). O tribunal nada disse sobre prisões provisórias. Se o juiz decidir que há necessidade da prisão preventiva, ele decreta. É claro que isso vai exigir do juiz uma atitude reflexiva. O juiz poderá mandar que o preso se recolha ao presídio, mas com pressupostos básicos;, afirmou.
Na opinião do presidente do STF, a sociedade é atingida de uma maneira geral pela insegurança, pelo mau funcionamento das políticas públicas e não existe relação com a decisão do tribunal. ;Essa decisão não provoca a libertação das pessoas de imediato, apenas daqueles que eventualmente não foram presos e para os quais não haja fundamento para uma prisão preventiva, tão somente isso. Então está se passando para a sociedade, talvez, uma visão equivocada do significado da decisão. Agora, o tribunal está, na verdade, aplicando uma norma da Constituição, ele não está criando algo do nada ou revelando um fato novo, isso está no texto constitucional;, avaliou.
Pela decisão, réus ;ilustres; como o juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto, que cumpre prisão domiciliar por fraudes na construção do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, podem pedir sua libertação ao STF. O julgamento também animou o advogado do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, acusado de matar a menina Isabella Nardoni ao jogá-la do 6º andar de um edifício em São Paulo. Como os dois ainda não foram julgados e cumprem prisão preventiva, o advogado prometeu apresentar um novo pedido de habeas corpus ao Supremo.
;Faz-de-conta;
Na sessão de 5 de fevereiro, o tom da resistência dos ministros contrários à tese vencedora pode ser visto pela avaliação de Joaquim Barbosa. Para ele, o STF estava contribuindo para a criação de um ;sistema penal de faz-de-conta;, em que os processos jamais chegariam ao fim. O ministro afirmou que nenhum outro país é tão generoso em oportunidades para criminosos recorrerem contra decisões da Justiça. Também contrária à decisão, a ministra Ellen Gracie chegou a fazer um apelo para que os colegas mudassem de ideia. Ela classificou de ;inconcebível; um sistema em que todas as causas tenham que ser julgadas em definitivo pelo STF antes que os réus sejam mandados para a cadeia.
O ministro Carlos Alberto Direito afirmou que, a partir de agora, até réus confessos terão direito a viver em liberdade enquanto seus recursos não cheguem ao STF. Os argumentos foram reforçados por associações de juízes e promotores, que protestaram contra a decisão. O jurista e doutor em direito penal pela Universidade de Madri, Luiz Flávio Gomes, acredita que a decisão do STF vai lotar o judiciário de recursos. Segundo ele, será difícil ter um réu que não queira recorrer da sentença.
Para Gomes, a medida tomada pela corte, no entanto, foi acertada e correta, já que ;como regra, todo o cidadão tem o direito de ficar livre até que se esgotem as possibilidades de defesa;. ;Todo réu vai querer recorrer e os recursos vão lotar o Judiciário, mas isso faz parte da ampla defesa de uma pessoa;, disse. O jurista afirmou que a prisão preventiva continuará sendo um grande instrumento para que a sociedade não tenha que conviver com criminosos perigosos. De acordo com ele, os juízes terão de ser firmes na decisão de manter ou não um criminoso na cadeia.
Ao defender a mudança na jurisprudência do STF, a maioria dos ministros argumentou que as prisões estão lotadas e que muitos brasileiros são punidos antes de ter a culpa comprovada por tribunais superiores. Cezar Peluso disse que as cadeias estão com pessoas ;saindo pelas janelas;. O ministro Ricardo Lewandowski disse que a lentidão do Judiciário não justifica que réus sejam presos sem condenação definitiva.