Para o déficit de quase 200 mil vagas, em um sistema que abriga 445 mil presos, Airton Michels tem uma receita simples: construir cadeias mais baratas. A ideia do promotor de justiça e atual diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) conta com o aval do ministro da Justiça, Tarso Genro, e será colocada em prática a partir deste ano. Em entrevista ao Correio, Michels critica a cultura do encarceramento entre os juízes, explica o atraso na execução orçamentária do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), ironiza o pensamento penal brasileiro e entusiasma-se com as unidades para jovens e adultos, que com muito otimismo ficarão prontas em 2011 nos 10 estados que já receberam recursos do governo federal. ;Acho difícil que o ministro ou eu inauguremos alguma dessas penitenciárias;, reconhece.
O ano de 2008 terminou com cerca de 22 mil presos a mais que em 2007, enquanto o número de vagas criadas no período foi de 6.500. Como enfrentar esse descompasso?
Esse descompasso é o que tem levado o Brasil a ter o déficit atual de 190 mil vagas. Veja que o maior crescimento de presos do mundo, em termos proporcionais, ocorreu aqui. Tínhamos, em 1990, 110 mil presos. Hoje temos 445 mil. Mais que quadruplicamos esse quantitativo. Não há demanda de serviço público que consiga atender. Mas estamos trabalhando. Através do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), orçado até 2011, já repassamos a 10 estados recursos para a construção de penitenciárias para jovens e adultos, de 18 a 24 anos, verdadeiramente comprometidas com a recuperação.
Quando essas penitenciárias estarão prontas?
Esses 10 estados já receberam o dinheiro, cerca de R$ 15 milhões para cada, para iniciar as obras. A partir de agora, eles farão a licitação, que deve levar cerca de quatro meses. O tempo de obra de um presídio assim é demorado, cerca de um ano e meio. Então podemos pensar em algo para 2011.
Apesar desses repasses via Pronasci, dos R$ 205 milhões disponibilizados no Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), só 8% foram efetivamente pagos até o início de dezembro. Qual a dificuldade para usar essa verba?
Tínhamos disponíveis R$ 188 milhões, pois R$ 22 milhões estão contingenciados. Mas posso dizer que executamos aproximadamente 90% do fundo até o final do ano. É preciso lembrar que, quando se fala de orçamento, o termo ;pago; refere-se à obra que já ficou pronta. Quanto aos empenhos (dinheiro comprometido com o pagamento de uma obra que será entregue), executamos mais de 90%. Temos de lembrar também o fato de o orçamento ter sido votado em abril, ou seja, com atraso de quatro meses. E é impossível que uma obra que comece em abril ou maio fique pronta até o fim do ano. A legislação é cuidadosa e tem de ser cumprida. Antes de começar uma obra precisamos, por exemplo, de todas as licenças ambientais e do município. O ideal seria que o sistema legislativo providenciasse que o exercício financeiro fosse de dois anos. Um ano é muita correria. Não basta gastar, temos que gastar com qualidade. Em segundo lugar, recebemos um crédito extraordinário que foi objeto de uma ação de inconstitucionalidade. Perdemos esse montante em fins de março. Isso nos desestruturou um pouco. Reavemos parte desse crédito, R$ 150 milhões, em 30 de novembro. Agora estamos na correria para dar andamento aos projetos. Sem esse orçamento, não tínhamos como tocar.
A despeito dessas oscilações relacionadas a créditos extraordinários, os R$ 205 milhões iniciais (dotação autorizada, contando com os R$ 22 milhões contingenciados) estavam lá, disponíveis para serem usados, não é mesmo?
Acontece que em julho a reserva de contingência passou de R$ 22 milhões para 80 milhões. A diferença (R$ 68 milhões) voltou para o saldo disponível só em setembro. Outra coisa que atrapalha são os projetos que chegam dos estados faltando informações, documentos. Então têm que ser refeitos. Pois temos que gastar, mas gastar bem, com critérios. Se há um atraso nas execuções do Funpen, a principal causa do problema são os estados.
O sistema federal de segurança máxima teve sua eficácia questionada após a descoberta de que os traficantes Luiz Fernando da Costa e Juan Carlos Ramirez Abadia, ambos presos do sistema, planejavam sequestrar familiares de autoridades. O Depen reconhece que é um erro colocar criminosos perigosos em uma mesma unidade?
Foi o serviço de inteligência do nosso sistema penitenciário federal que detectou os planos. E os presos não trocaram informações lá dentro. Eles passam recados e informações através dos advogados e das visitas. Em meados de 2009, teremos mais duas penitenciárias federais de segurança máxima funcionando, a de Porto Velho (RO) e Mossoró (RN). Com mais espaço, poderemos espalhar os criminosos perigosos.
E a quinta e última penitenciária federal de segurança máxima, que será construída em Brasília, fica pronta quando?
Bom, já temos o terreno, que inclusive é da União, na área da Papuda. Ali provavelmente este ano já teremos condições de iniciar as construções.
Os advogados deveriam ser revistados em todo o sistema penitenciário do país?
É difícil, pois depende dos juízes de cada estado. Aqui no sistema federal os advogados são revistados. Não entram com nada. Mas há códigos e senhas indecifráveis. Como o preso, mesmo o perigoso, não pode e nem deve ficar isolado, por uma questão de dignidade humana, é um problema difícil.
O senhor acha que é preciso mudar a legislação penal brasileira?
Sim, nossa Lei de Execuções Penais é de 1984, traz coisas que nunca foram implementadas e precisa ser modernizada. Mas não é só isso. Cerca de 10%, usando um número muito modesto, dos presos provisórios do país, ao serem condenados, pegarão uma pena alternativa, e não cadeia. Por que manter essa pessoa presa, então? Para decretar a prisão de uma pessoa provisoriamente, em regra, o juiz leva de 15 a 20 minutos. Para analisar um pedido de liberdade, demora de 2 a 3 horas. O ato de decretar a prisão é mais banal que o ato de soltar, quando deveria ser o contrário. Nesse ponto, estamos trabalhando com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para mudar essa cultura. O Brasil talvez tenha as penas mais brandas do mundo, em termos de tempo, mas são as mais cruéis, porque durante muitos anos ninguém quis construir cadeias. Então os detentos cumprem penas nessas espeluncas onde, se a pessoa não tinha pendor para o crime, lá dentro terá grandes chances de desenvolver. O pensamento penal brasileiro tem resolvido o problema da hotelaria na baixa temporada. Pode ver que todo dia tem congressos e seminários sobre a prisão. Nós vamos nesses eventos e contribuímos com o setor da hotelaria, mas não para resolver o problema prisional do país.
Construir cadeias é fundamental, então?
Claro. Essa visão hipócrita, irreal e incompetente de que não se deve investir em cadeias está mudando. Ah, mas cadeia não ressocializa ninguém. Pode até ser, só que até hoje o mundo civilizado não achou outra alternativa. Defenderemos, a partir deste ano, cadeias mais baratas inclusive. De 60% a 70% da massa carcerária do país não precisa de 60 centímetros de brita no chão e chapa de aço nas paredes. Enquanto gastamos hoje R$ 35 mil por vaga, defendo que gastemos no máximo R$ 10 mil em locais onde é possível abrir mão de determinados aparatos, como em municípios com 150 presos, por exemplo. Faríamos, então, três ou quatro vezes mais cadeias do que atualmente com o mesmo dinheiro.