Notícias do obscuro mundo do cárcere chegam todos os dias à Esplanada dos Ministérios. Mais precisamente ao 6º andar do anexo do Ministério da Justiça, onde funciona a Ouvidoria do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Criado em 2004, o canal de comunicação para os detentos falarem diretamente com o centro do poder, na capital federal, se popularizou. Tanto é que, atualmente, a ouvidoria recebe todos os dias cerca de 80 cartas vindas de presídios do Brasil inteiro. As pilhas de papel trazem relatos doídos da solidão atrás das grades, pedidos de atendimento médico, súplicas pelo perdão da pena, denúncias graves de maus-tratos. Algumas são apenas desabafos, desenhos, grafites, não solicitam nada nem delatam ninguém. Outras contam histórias absurdamente inusitadas.
Um relato que se tornou conhecido de tão fantasioso chegava insistentemente da Penitenciária Estadual de Andradina, em São Paulo. O detento, com mais de 40 anos de idade, contava que estava sendo usado como cobaia em uma experiência da Nasa, a agência espacial norte-americana. Em uma das cartas, escritas de próprio punho, ele detalha que tinha sido implantado em seu corpo um ;sistema de altíssima tecnologia, o microbiochip;. Em outra correspondência, ele ;denuncia; que muitas pessoas submetidas à experiência ;foram seqüestradas por etes (sic);.
Como a Ouvidoria do Depen encaminha 100% das cartas aos órgãos competentes, em função do assunto, os relatos do detento de Andradina chegavam à Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo. Em junho de 2007, depois de repetidas correspondências, a SAP decidiu verificar se o preso tinha algum chip no corpo. ;Abriram o homem e descobriram que ele introduzia pequenas peças de telefone na pele. Havia materiais no braço, na perna;, diz Kellyane Moreno, ouvidora do Depen, mostrando as fichas de raios-X que a SAP a enviou. ;Fazemos o acompanhamento de tudo, anexando as respostas dos órgãos em relação às denúncias ou solicitações;, explica.
O destino das cartas que chegam ao Depen vai depender do tema. Um parceiro muito ativo, de acordo com Kellyane, são os ministérios públicos nos estados. ;Quando se trata de denúncia grave, disparamos para todo mundo;, explica a ouvidora. Pedidos de indulto individual ; direito de qualquer preso, independentemente do crime cometido e do tempo já cumprido, de solicitar o perdão da pena ; são muito comuns. Cerca de 4 mil por ano, embora nenhum seja atendido. As cartas desse tipo quase sempre estão endereçadas à primeira-dama, Marisa Letícia.
A maioria das correspondências para a esposa do presidente, quando enviadas por mulheres, tem tom de intimidade. Em uma delas, em papel rosa, a detenta descreve sua vida pregressa à primeira-dama: ;%u2026 Sabe dona Marisa, eu sempre fui uma pessoa trabalhadora, comecei a trabalhar aos 11 anos em uma feira em São Bernardo do Campo%u2026;, diz o relato. Todos os detentos que escrevem para o Depen recebem uma resposta, mesmo que seja apenas avisando sobre o recebimento da carta. O fato de terem um retorno parece ser o mais importante, segundo Heidi Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária. ;Quando chegamos no presídio, eles vêm contar: ;Veja, mandaram uma carta para mim;. É como se alguém se lembrasse deles;, diz Heidi, que visita presídios no país inteiro.
Mas o campeão de pedidos via ouvidoria do Depen é de assistência jurídica. Mais de 60% das cartas solicitam verificação do processo, especialmente sobre os prazos para progressão de regime. Muitas chegam assinadas por 100 ou mais detentos. Presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Andef), Fernando Calmon reconhece as dificuldades. ;Somos 5 mil defensores no Brasil, o ideal seriam 12 mil. O problema é que passamos décadas sem investimento na área carcerária. Só agora o assunto se tornou recorrente;, destaca o presidente da entidade. Ele afirma ainda que, do número deficitário de defensores existentes, só 30% atuam na área penal.
A equipe de 10 funcionários do Depen que fazem a leitura das cartas já aprendeu a não se deixar envolver emocionalmente pelos relatos. Mas nem sempre é possível, destaca Flávio Salomão. ;Às vezes, analisando o jeito que a pessoa escreve, os detalhes descritos, a gente pensa: ;Poxa, esse está falando a verdade, esse é inocente mesmo;;, diz o funcionário. Acostumado com boas caligrafias mas também com verdadeiros garranchos, Salomão se impressiona mesmo é com o nível de conhecimento na área do direito. ;Recebemos peças processuais brilhantes aqui. Tem detento que escreve muito melhor que advogado;, ressalta.
Em meio aos relatos trágicos, que já fizeram uma funcionária pedir para mudar de setor, uma carta é lembrada por todos com alegria. ;Por incrível que pareça recebemos há pouco tempo um elogio;, conta Kellyane. A carta veio de Tremembé, em São Paulo. Nela, o detento diz que não acreditava em ressocialização, mas mudou de idéia. Vai sair da prisão recuperado, inclusive da dependência de drogas. ;É muito bom quando a gente vê que surte resultado. Conseguimos muitas vezes garantir atendimento médico ou remoção do detento para um presídio mais perto da família;, conta Salomão.