Neta de Jorge Amado, Cecília Amado começa a filmar hoje, em Salvador, a adaptação para o cinema de uma das obras mais conhecidas de seu avô, Capitães da areia. O livro teve mais de 100 edições e vendeu cerca de 5 milhões de exemplares no mundo. Recentemente, a Companhia das Letras lançou mais uma delas com produção caprichada, epílogo de Milton Hatoum e cronologia do autor. A obra cinematográfica será produzida com meninos de comunidades carentes que integram organizações não-governamentais na Bahia. Confira a entrevista com Cecília, que estréia na direção com o longa-metragem.
ENTREVISTA // CECÍLIA AMADO
Qual a sua análise sobre os filmes baseados na obra de Jorge Amado?
Gosto mais de uns, de outros menos. O livro resiste muito mais ao tempo do que o cinema. Alguns ficaram marcados nas suas épocas. Comecei a fazer cinema no Tieta (do Agreste, dirigido por Cacá Diegues, de 1996), tinha 18 anos e fiz estágio. O meu produtor de Capitães da areia era o mesmo do Tieta, há 15 anos. Há muitos vínculos. Gosto dos filmes em geral, do Tenda (dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos, de 1977), Dona Flor (e seus dois maridos, de Bruno Barreto, 1976). Cada um tem seus pontos fortes e guarda o universo do Jorge Amado dentro dele.
Os meninos que participaram da pré-produção e não foram selecionados vão trabalhar em funções técnicas no filme. Como surgiu essa idéia?
O interesse partiu dos próprios meninos. Quando escolhi trabalhar com não-atores e meninos de ONGs de arte-educação, o primeiro passo foi me envolver com essas organizações, freqüentá-las e entender a característica de cada uma. Precisava conhecer a fundo, não tinha como falar desse assunto sem ir a campo. Foram 22 organizações diferentes, e muitas não passavam pelo teatro. A maior parte desenvolvia atividades de música, dança, capoeira e outras áreas, como moda, artes plásticas, marcenaria, eletrônica. Vi que esses meninos tinham potencial também para outras funções específicas dentro do cinema. Então, acreditamos que os que não foram aproveitados no elenco principal ou figuração poderiam ter interesse de conhecer outras áreas. O Capitães da areia só existe por esse valor social, de integração social dos meninos. O que motivou o filme foi jogar uma luz para essa questão dos meninos de rua, que está tão parada e igual aos anos 1930. Pouca coisa mudou. O cinema é o principal fim dele, mas eu queria fazer uma coisa maior, chamar a atenção para o trabalho dessas organizações. É o que houve de positivo nesses 70 anos. Se houve aumento da violência, por outro lado também existiu esse movimento para ajudar as crianças e tentar mudar a situação.
Quais foram os critérios para chegar aos 12 protagonistas?
Foi um processo longo de observação. Testei 1.100 meninos. Desses, tivemos grande dificuldade para chegar em 90. Tinha muita gente interessante e talentosa dentro da faixa etária, que foi um dos primeiros critérios, junto com o de participarem de organizações. Escolhi esses 90 que fizeram dois meses de oficina. Cada personagem tem a sua característica, que é física, mas também é do instinto, do humor. Eu queria ter 12 personagens diferentes, não simplesmente massificar entre 12 que interpretam bem. Fui muito pelas características e a relação dos meninos com os personagens. Escolhidos alguns reais candidatos, experimentamos o grupo. A química era muito importante. Não adiantava ter incríveis atores interpretando o Pedro Bala e o Professor, mas que não fossem absolutamente irmãos, cúmplices e parceiros. Nem me prendi tanto aos critérios físicos. A Dora seria teoricamente uma menina loura e mestiça, e eu tenho uma indiazinha, moreninha, maravilhosa. Ela é a Dora, no jeito guerreiro e doce ao mesmo tempo, batalhadora e dona de maturidade grande. Ela tem 14 anos mesmo. Hoje, eu tenho convicção de que fiz as apostas certas.
Qual o motivo da escolha de Capitães da areia para a estréia na direção?
Eu não escolhi, na verdade. Ele me conquistou. É um projeto muito especial porque tem um potencial comercial evidente, de ser o livro mais vendido do Jorge Amado, e isso me dá a possibilidade de fazer um filme que seja visto. Não por uma questão de sucesso, mas porque eu quero que essa mensagem chegue ao maior número de jovens. Ele junta esse potencial comercial com um lado social e a possibilidade de fazer um filme de arte.
Foi difícil traduzir o livro para um roteiro de cinema?
Muito, porque ele tem milhões de histórias e personagens. Jorge Amado foi muito adaptado porque escreve as coisas de uma forma cinematográfica. A adaptação de obra para o cinema é sempre complicada. Mas eu escolhi um recorte e tentei me manter fiel à essência da história, não necessariamente a todos os detalhes.
E a questão dos diálogos, já que o livro se situa em 1930?
Alguns são inspirados no livro; outros, não. Quis manter algumas expressões de época, e pegar umas atuais, muito típicas da Bahia, que soam como de época. Sobretudo, construí isso na boca dos meninos. É muito difícil pegar todo um texto de época e forçar o jovem a falar daquela forma. Traz uma artificialidade que não é o que estou buscando com esses atores.
Recentemente, Ó paí ó traçou um retrato da Bahia que alguns criticaram pela caricatura. Qual é o retrato que você pretende procurar traçar do estado?
É a Bahia pelo olhar desses meninos. A história é deles, a Bahia é pano de fundo. Essa vibração no Ó paí ó, de certa forma, é um pouco caricata para quem vê de fora, mas real. A gente não passa muito por esse universo, mas há as cores, a energia, a espiritualidade bem à flor da pele típicas da Bahia. Isso aí não mudou também. A música do Carlinhos Brown é a trilha, que também faz uma releitura da Bahia dos anos 1950. Ele foi discípulo do Batatinha, aprendeu muito com isso, tem essa raiz, mas por outro lado faz uma leitura contemporânea. O filme vai ter essa cara contemporânea que é a Bahia de hoje servindo ao universo do Jorge Amado.
Por que a demora para Capitães de areia chegar às telas?
Não vou saber dizer porque nunca foi feito antes. Eu sei que já houve uma adaptação americana no início da década de 1970. Essa versão não chegou a ser distribuída no Brasil ou fora do país, só teve uma preliminar na União Soviética. Uma versão do ponto de vista de fora. Na última década, muitos diretores e produtores procuraram a família com interesse em fazer essa adaptação. De certa forma, já havia sinalizado lá atrás que eu tinha vontade de fazer. Respeitaram e confiaram em mim, e esperamos o momento certo.
Você tem planos de filmar outra obra do seu avô?
Há um livro para o qual até já escrevi um roteiro anos atrás, que é um dos últimos dele: A descoberta da América pelos turcos (1994). É uma comédia, um livro bem pitoresco e leve. Também mistura misticismo com humor e paixão.