A caipirice de Chico Bento pode até soar simpática para os fãs do personagem criado por Mauricio de Sousa. Mas, longe dos quadrinhos, o português errado e a falta de intimidade com operações elementares da matemática têm conseqüências desastrosas. No Brasil, onde o analfabetismo atinge 9% dos jovens que moram no campo, índice quase 400 vezes maior que os 2% registrados nas cidades, a história é real. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que o nível de escolaridade da população urbana com idade entre 15 e 29 anos é 50% superior ao da juventude rural.
O fosso educacional entre os dois mundos prejudica diretamente uma legião de 7,6 milhões de jovens que vivem longe das cidades. Para eles, as chances de melhorar de vida por meio do estudo são praticamente nulas. ;Enquanto a juventude urbana estudou nove anos, no campo, essa média não passa de seis. Daí vem essa diferença de escolaridade;, explica Jorge Abrahão, diretor de pesquisas sociais do Ipea e coordenador do estudo sobre o ensino rural no Brasil.
Armênio Bello Schmidt, diretor da área de diversidade do Ministério da Educação (MEC), reconhece as deficiências. ;De todos os indicadores da educação pública no país, os piores estão no campo, sem dúvida;, diz Schmidt. De acordo com ele, as dificuldades do ensino no meio rural, onde vivem quase 20% da população, de acordo com o último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, começa pela falta de escolas.
Para se ter uma idéia, no campo, os alunos do nível fundamental representam 16,4% do total de matriculados nessa faixa. No caso do ensino médio, o indicador cai para 3%. ;São números muito baixos, por mais que a população rural seja menor. O grande problema no campo ainda é oferecer a vaga, diferentemente da cidade, onde o ensino, com todas as deficiências, está praticamente universalizado;, afirma Schmidt.
Instalações precárias
Mas o problema não se resume à falta de vagas. Nas poucas escolas que existem, a precariedade é gritante. Nem todas contam com itens básicos como água, energia elétrica, esgoto e sanitário. ;Temos 24 mil escolas sem banheiro, imagine o que isso implica para o aluno. São 20 mil estabelecimentos sem luz;, ressalta Schimdt. Os recursos pedagógicos, em quase 100% dos casos, resumem-se aos livros pouco afeitos ao cotidiano do aluno e professores nem sempre bem treinados. Só 2,5% dos colégios têm salas de TV e vídeo. Menos de 1% montaram laboratórios de ciências. Salas de informática estão presentes em apenas 1,7% das unidades, mas em nenhum há acesso à internet.
Tatiani José Pereira e o irmão, Tihallas, aguardam ansiosamente o dia em que terão computadores na escola rural onde estudam, na cidade de Brazlândia (DF). ;A direção disse que vai fazer uma sala de informática, mas a gente não sabe quando;, conta a garota de 14 anos, estudante da 8; série. Ela e Tihallas, de 12 anos, precisam andar cerca de três quilômetros da chácara onde moram até o ponto de ônibus. ;Acordo às 4h30 para chegar aqui às 6h. A gente nunca sabe a hora certa que o ônibus vai passar;, conta a adolescente. Para Tihallas, o estado precário do transporte é a pior parte da ida ao colégio. ;Quase toda semana o ônibus quebra;, conta o menino.
O pai das duas crianças, José Martins, confirma o relato. ;Quando o ônibus pifa, ligam para a gente buscar os meninos. É difícil em época de chuva;, conta. Apesar dos pesares, o agricultor incentiva os filhos a irem à escola. Para Abrahão, a idéia de que a educação é desnecessária para o jovem cujo plano é continuar no campo tem mudado. ;O esforço da universalização, apesar dos problemas, tem aproximado a comunidade rural do ensino. Quando a escola estimula o aluno, se há transporte adequado, boa didática, a família entende que estudar vale a pena;, afirma.
Segundo ele, a pedagogia das escolas rurais ainda não está apropriada para receber o aluno. ;Usar exemplos de lugares que o estudante nunca foi nem irá o afasta. É preciso que o processo pedagógico seja mais acessível ao imaginário dessas pessoas;, diz Abrahão. Schmidt, diretor da área rural no MEC, concorda. ;O aluno deve ter o conteúdo universal, para que, se decidir estudar na cidade, tenha condições de acompanhar a turma. Mas o ensino deve ser contextualizado. Por que não estudar interpretação de texto usando conhecimentos do campo?;, exemplifica o diretor.
Escolas fechadas
O fechamento de escolas no meio rural tem sido cada vez mais freqüente. A afirmação é de Armênio Bello Schmidt, diretor da área de diversidade do Ministério da Educação (MEC). Embora ele não tenha números oficiais, explica que se trata de uma política de estados e municípios, que preferem construir os chamados colégios núcleo, quase sempre na área urbana, para receber alunos do campo. De acordo com Schmidt, 94 mil crianças da educação infantil são transportadas diariamente do campo para a cidade. ;Uma prática cansativa para o aluno e muitas vezes perigosa;, critica o diretor.
Schimdt explica que o MEC incentiva os colégios rurais a implantarem classes multisseriadas, onde alunos de diferentes séries de cada ciclo escolar estudam numa mesma sala, na tentativa de impedir o fechamento dos estabelecimentos. O projeto mais forte do governo federal nesse sentido é o Escola Ativa, que trabalha com uma metodologia adequada para esse tipo de ensino. ;Não adianta termos turmas nessa modalidade se o professor não sabe como passar o conteúdo dentro do formato;, destaca Schimdt. Hoje, cerca de 41 mil escolas no campo ; pouco menos de 50% do total ; contam com classes multisseriadas. (RM)
Faltam bibliotecas
Apenas 6,5% das escolas rurais do país têm um espaço considerado primordial em qualquer estabelecimento de educação: a biblioteca. Sem material adicional de leitura, restam ao aluno os livros obrigatórios, que muitas vezes não atendem às suas necessidades. ;Temos conversado com as editoras para tirar estereótipos dos materiais, como o menino do campo de pé no chão, aquelas casinhas feias;, explica Armênio Bello Schmidt, diretor da área de diversidade do Ministério da Educação (MEC). Para Cleide Soares, umas das coordenadoras do programa federal Arca das Letras, de incentivo à leitura na área rural, o jovem do campo tende a ler mais que as pessoas do meio urbano, basta que lhe seja dada a oportunidade.
;Diferentemente da juventude da cidade, no campo eles não têm o shopping, a locadora, o show. O entretenimento passa a ser o livro;, diz Cleide, com a autoridade de quem coordena o projeto responsável pela implantação de 5.500 bibliotecas em 1.712 municípios rurais. A Arca das Letras monta um acervo mínimo de 200 livros, que são arrecadados em campanhas ou doados por entidades parceiras, para iniciar a biblioteca, sempre implantada fora do ambiente escolar. ;A comunidade participa de tudo, desde a escolha do local até o acervo, e isso faz toda a diferença. Além da literatura clássica, mandamos livros de interesse deles. Se é para uma comunidade de pescador, por exemplo, procuramos obras que tratem do assunto. A resposta é surpreendente;, diz Cleide.