;Uma mulher, que tinha um envolvimento lá - enfim, questão de adultério - foi posta na rua, teve a cabeça raspada e teve que descer o morro. Ela tinha um envolvimento com um traficante, que saiu dali depois que a milícia tomou o controle. Ela, por isso - ou por, não sei qual foi a postura dela depois que a milícia tomou o controle - ela foi colocada nua, pra fora de casa, teve a cabeça raspada e foi obrigada a descer o Morro do Sossego assim;.
O relato é de um morador de Bangu, subúrbio da região Oeste do Rio de Janeiro, e consta da pesquisa ;Seis por Meia Dúzia?;, um estudo coordenado pelo professor Ignácio Cano, que ouviu moradores de áreas dominadas por milícias na capital e na Baixada Fluminense, lançada hoje (18).
O estudo baseou-se em 248 matérias de jornais, 3.469 registros do Disque-Denúncia, além de 46 entrevistas com moradores de áreas onde as milícias atuam. Os dados demonstram que, entre janeiro 2006 e abril de 2008, foram registradas 1.549 denúncias de extorsão em áreas dominadas por milícias e mais de 500 acusações de homicídios, o que confirma a natureza violenta desses grupos e o tipo de dominação que exercem.
O cotidiano se mostrou mais cruel em bairros onde o controle das milícias ultrapassa os limites da privacidade. Muitos procedimentos se assemelham às praticas do tráfico.
;Minha mãe mora em Bento Ribeiro [zona Norte]. Lá, puseram na caixa de correio dela um bilhete: segurança particular, mensalidade R$ 30,00. Eles entregaram a filipeta e avisaram em todas as casas que a partir daquele momento houve um controle tremendo. Não pode mais ouvir música alto (...) e eles não aceitam funk, eles não aceitam todo tipo de música;, descreve um morador do bairro Del Castilho, na zona Norte.
Pelo relato do mesmo morador, a milícia também decide se é a hora de as crianças irem para creches. ;Eles disseram que ela informasse a eles mensalmente as crianças que estavam indo para a creche, porque eles iriam tentar averiguar quais eram os motivos. Se fosse um motivo banal, por exemplo, eles iriam denunciar para o conselho tutelar;, diz o morador.
De acordo com o coordenador da pesquisa, houve grande resistência dos moradores dessas áreas para falar sobre o assunto. ;Conseguir testemunhos sobre milícias [foi] mais árduo que obter depoimentos sobre o tráfico, por exemplo. Apesar da garantia de sigilo, vários entrevistados se mostraram claramente receosos, se negaram a gravar;, comentou. Na maior parte das vezes, os moradores responderam às perguntas, fora do bairro, no ambiente de trabalho. As entrevistas foram realizadas entre outubro de 2007 e março de 2008.
Alguns depoimentos demonstram que a intensidade do controle sobre a população é variável, dependendo de cada área. De acordo com a pesquisa, em alguns lugares os milicianos atuam quase como um sistema de segurança privado, não interferindo na vida dos moradores de forma tão efetiva ou ;desde que a ordem pública não seja ameaçada;, relata a pesquisa.
;Não, não colocaram regra nenhuma não. Pelo contrário, eles até eram bem solícitos com os moradores. Quando alguém chegava aqui mais tarde, acompanhavam até chegar em casa. A milícia aqui foi milícia ligth. Milícia braba tem lá na Carobinha [Favela da Carobinha localizada na região de Campo Grande, na zona Oeste];, disse um entrevistado morador de Bangu, também na zona Oeste da capital.
As entrevistas demonstraram que algumas milícias restringem o direito de ir e vir dos moradores dos bairros onde se impuseram. Os moradores acabam impedidos de circular pelos ;territórios; considerados inimigos. ;Não se pode usar drogas e nem pensar em ir lá na Cidade de Deus;, disse um morador de Jacarepaguá. A Cidade de Deus é dominada por traficantes.
O pesquisador da Justiça Global Rafael Dias, que participou das entrevistas, destacou que o nível de interferência na vida particular é um ponto que diferencia a milícia da atuação do tráfico de drogas, por exemplo. As duas organizações interferem, mas de formas diferentes. ;Quando há uma briga, o traficante faz uma mediação. Já houve caso do tráfico também espancar homens que batem em mulher. Mas a milícia apresenta uma cultura militar. É um discurso moralizante. Não pode beber, Não pode escutar funk. O discurso anti-drogas também é muito forte;, disse o pesquisador.
Apesar do discurso conservador, em alguns lugares a milícia optou por permitir a venda de drogas e o uso, dentro de casa. ;Eles permitem que a pessoa use drogas em casa. Se pegam a pessoa fumando maconha ou crack na rua, eles dão uma dura. Se pegam de novo, eles matam;, destacou.
Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Milícias, instalada na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o deputado Marcelo Freixo destacou que, devido ao discurso moralizante da milícia, a população dos bairros passou a enxergá-las com bons olhos. ;A população chegou a ver as milícias também como um mal menor. Isso porque existe um apelo moral. Eles chegam, dominam o território e dizem que não tem mais a droga, não tem mais a baderna, não tem mais o tiroteio com a polícia. E não tem mesmo porque a milícia não enfrenta a polícia. A milícia é a polícia;, afirmou o deputado.
No entanto, os efeitos nocivos do controle passam a ser sentidos pela população, na opinião de Freixo, logo após o início da atuação dos milicianos. ;A população começa a sentir que vira refém desses grupos, que matam também. Eles não apenas matam as pessoas, eles matam e mostram que matam;, descreve o deputado.
Submetido a uma situação na qual as execuções sumárias são vistas como naturais, um morador de Santa Margarida, em Campo Grande, relata a ação de ;limpeza; promovida pela milícia local. ;Morador não morreu ninguém, era tudo bandido. O problema é que os bandidos eram todos conhecidos nossos. Tinha gente da minha idade, que cresceu comigo. A gente não podia nem falar que não, não matem. Era bandido, tinha que morrer, morreu;!
A CPI estima que existam hoje cerca de 150 milícias no estado do Rio de Janeiro. Quase sempre, seus integrantes podem ser identificados por um colete preto escrito ;apoio;. No entanto, parte dos integrantes da milícia trabalha à paisana e se confunde com a população dos bairros. Em alguns bairros, os milicianos proibiram a população de usar roupas pretas, cor privativa dos integrantes do grupo.
A concentração é na cidade do Rio, mais especificamente na zona Oeste da cidade, ao longo da Avenida Brasil, da Linha Amarela e nas cidades mais desenvolvidas do interior do estado, principalmente do Sul Fluminense. A pesquisa abordou moradores de várias áreas, mas principalmente as que apresentaram maior número de denúncias contra a milícia no Disque-denúncia: Campo Grande, Anchieta, Canal do Anil (Jacarepaguá), Bangu, Campinho, Comendador Soares, Del Castilho, Guadalupe, Guaratiba, Itaguaí, Jacarepaguá, Paciência, Penha, Ramos, Santa Cruz, Sepetiba e Vila Kennedy.