No conto 'O Espelho', do livro 'Primeiras Estórias', o narrador em primeira pessoa dialoga com o leitor e o convida a ter contato com uma aventura cheia de mistério. No fim do primeiro parágrafo, afirma: "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo." Milagre, palavra latina, significa prodígio, coisa maravilhosa e extraordinária. Não dá para pensar a obra de João Guimarães Rosa, cujo centenário de nascimento é comemorado hoje, ignorando o fato de que sua produção literária é desencadeada pela face fantástica (ou mitológica) da realidade, sempre a partir do sertão de Minas Gerais.
Mas o sertão está em toda parte. Esse mundo está dentro e fora do homem, ensinou o escritor nascido em Cordisburgo, no norte de Minas. Essa concepção é fundamental em sua obra, resultado da assimilação e transfiguração de duas vertentes da literatura brasileira da primeira metade do século passado: regionalismo e espiritualismo. A paisagem do sertão se tornou tão importante como elemento narrativo quanto a investigação subjetiva dos personagens. Rosa mostrou que o jagunço, mesmo sem saber ler, também se dedicava a especulações metafísicas, em meio à violência produzida pela ordem política e social injusta.
Essa assimilação resultou em algo inédito na literatura nacional, segundo Walnice Nogueira Galvão, uma das maiores especialistas brasileiras na obra rosiana. Ele sintetizou - e superou - duas vertentes contrárias. Ao valorizar o apuro formal, o experimentalismo lingüístico, o contato com a literatura universal e a criação de uma prosa como quem escreve poesia, Rosa fez a expressão pela literatura, no País, avançar ao mais alto grau. "Sua maior contribuição é, sem dúvida, a renovação e o enriquecimento da língua literária", afirma Walnice. "Nenhum outro autor brasileiro alcançou esse resultado, nem em poesia, nem em prosa, nem em dramaturgia, nem em nada."
Embora inevitavelmente associado a uma região brasileira, o autor de 'Grande Sertão: Veredas' se fez universal, característica nascida na erudição tanto literária quanto poliglota, segundo Walnice, que está lançando Mínima Mímica, conjunto de ensaios sobre a obra rosiana. O que surpreende na ficção de Rosa é a capacidade de reproduzir misteriosos processos de criação da língua, como se o escritor estivesse simultaneamente visitando o começo e o futuro da mais alta literatura.