a briga daágua

Que pegada você quer deixar?

Consumo exagerado, aliado a uma agropecuária de exploração, resulta em gastos maiores do que o planeta suporta. Para especialistas, a mudança tem que ser urgente

Joana Bicalho: "Temos que começar a prestar atenção no que consumimos e no quanto consumimos"

Mariana Pedroza - Especial para o Correio
Logo pela manhã, você abre a geladeira e enche um copo com a água que estava na garrafa de plástico. Depois, prepara um sanduíche para merendar no trabalho. Durante o almoço, acaba comprando um suco de latinha, porque era mais barato e prático. Já durante a tarde, você lancha o sanduíche que preparou pela manhã e limpa a boca com dois guardanapos. No fim do dia, lava a louça do jantar com detergente líquido.

Esse é um modelo de rotina comum a muitas pessoas. Mas o consumo desses alimentos e utensílios gasta muita água. Não é aquele consumo direto, como o de lavar a louça, por exemplo. O problema é mais embaixo e vai além do que se pode ver no dia a dia. Está ligado a um termo que os especialistas chamam de pegada hídrica. Ela está associada à quantidade de recursos hídricos necessários para produzir uma determinada quantidade de absolutamente tudo que existe no mundo. Do tomate ao foguete.

Por causa disso, a professora universitária e consultora em sustentabilidade Joana Bicalho, 51 anos, decidiu transformar a forma como ela impacta o planeta. "É claro que fechar a torneira enquanto você escova os dentes é importante. Mas é muito mais do que só isso. A gente tem que começar a prestar atenção no que consumimos e no quanto consumimos", explica Joana. E ela tem razão. Apenas 3% da água no planeta é doce e, desse total, somente 0,3% estão disponíveis para o consumo humano.

É bem verdade que adequar a rotina e fugir da comodidade não é lá muito fácil. A própria Joana foi se adaptando aos poucos. "Hoje, quando vou comprar queijo e presunto na padaria, eu não levo aqueles que vêm nas embalagens de isopor e plástico. Eu trago de casa um pote de vidro que eu ainda vou usar várias outras vezes", conta.

De acordo com um levantamento feito pela organização internacional Water Footprint, o Brasil tem uma pegada hídrica per capita de 2,27 milhões de litros por ano. A média nos outros países é de 1,24 milhões. O que isso significa? Segundo o WWF, que os mais de 7 bilhões de habitantes do planeta Terra precisam repensar urgentemente suas atitudes. Isso porque a previsão é que, em 2050, o mundo tenha mais de 9 bilhões de pessoas e, quanto mais gente, mais bocas para comer. Do total de água disponível para o consumo humano, 70% é utilizado na agricultura, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura no Brasil, FAO.

A professora de gastronomia vegana Amanda Paz, 25 , decidiu mudar os hábitos alimentares há 3 anos por questões de saúde e também sustentáveis. "Quando eu descobri o tanto de água que se gasta para produzir um quilo de carne, eu senti que poderia dar a minha contribuição para o planeta", explica. Seguindo o mesmo pensamento, ela começou a substituir produtos de limpeza, como desinfetante, por vinagre com essências de eucalipto, lavanda e citronela.

Uma maneira de começar, nem que seja aos poucos, a mudar a realidade de superconsumo é apostar em produtores locais. Amanda compra verduras, legumes e frutas em uma feira orgânica todos os fins de semana. Além de incentivar o comércio local, "eu deixo de comprar produtos que tiveram que ser transportados de outros estados. Dessa forma, é possível economizar combustível, embalagem e, consequentemente, água."

De olho na agricultura
Além do consumo brasileiro de água estar acima da média mundial, a área de irrigação no país quase dobrou nos últimos 5 anos: chegou a 1,2 milhões de hectares, segundo a Embrapa. Para o representante da FAO no Brasil, Alan Bojanic, os brasileiros têm muito o que fazer no que diz respeito ao reaproveitamento de recursos hídricos. Em 2050, o país terá cerca de 300 milhões de habitantes e, em razão disso, "precisaremos aumentar a produção de alimentos em pelo menos 30%. Além de mais água para irrigação, também serão gastos mais fertilizantes, sementes e máquinas", explica Bojanic.

Para minimizar os efeitos desse aumento de produção, Bojanic defende que a consciência dos produtores tem que mudar. "A crise hídrica de 2014 e 2015 nos levou a repensar o uso da água. Mas o que precisa ser feito é melhorar a capacidade de prever situações climáticas extremas, incentivar novos métodos de irrigação e evoluir no melhoramento genético das plantas."

Aliado a um novo comportamento no meio rural, as coisas somente vão mudar quando o cidadão, no seu lugar de consumidor, também fizer a sua parte. O superintendente do WWF, Mário Barroso defende, entre outras coisas, que sejam criadas políticas de incentivo para aqueles que reduzirem os níveis de consumo de água. "Seria interessante haver um desconto no IPTU se o morador investisse em energia renovável ou se reaproveitasse a água da chuva, por exemplo".

É possível gastar menos

Em casa ou no trabalho, há iniciativas para ajudar o planeta e diminuir
o tamanho da conta no fim do mês

Cergina Rodrigues: captação da água da chuva para lavar roupa resulta em economia de 35%

Economizar é preciso e conscientizar também. Já pensou realizar ações que diminuem o consumo de água dentro de casa ou no seu local de trabalho? Campanhas com essa finalidade já acontecem nos lares e em empresas, fazendo a diferença no valor da conta de luz e na conservação dos recursos hídricos do país.

Marcelo Mendonça é gerente administrativo nos Institutos Visão, empresa oftalmológica, onde participou da criação da campanha EcoVisão, iniciativa que tem o objetivo de diminuir em 10% o consumo de água nas oito unidades localizadas em Brasília. Por lá, os funcionários são os principais colaboradores e fazem questão de abordar a preocupação com o meio ambiente nas sinalizações das dependências da empresa. Lá há mensagens de conscientização perto das pias, descargas e filtros, por exemplo, lembrando aos colegas a importância de reduzir o consumo.

Novos hábitos foram adotados com a realização de ações simples do dia a dia. O instituto instalou temporizadores de água nas torneiras dos banheiros e descargas econômicas, entre outras iniciativas. "A ideia era reduzir gastos e economizar diante da crise de racionamento que o país enfrentou há alguns anos. Problemas nacionais foram o gatilho para lançarmos a ação dentro da empresa", conta o gerente.

A analista de marketing Lauana Murada, inspirada pela empresa, onde trabalha há dois anos, levou atitudes de economia para dentro de casa. Hoje, ela reaproveita a água da máquina de lavar roupa para limpar a garagem e outros cômodos da residência, além de ter reduzido o tempo do banho. "Tento diminuir o meu consumo para não usar além do necessário", conta.

Uma família de Ceilândia também é exemplo de criatividade. Na casa, moram 14 pessoas - quatro crianças, três adolescentes e sete adultos. Entre as atividades cotidianas está o hábito de lavar roupa pelo menos três vezes por semana. O que seria motivo para muito gasto e desperdício virou uma oportunidade de inovar.

Marcelo Mendonça e Lauana Murada: economia no trabalho e inspiração para casa

Cergina Rodrigues e José Lucas Rodrigues, responsáveis pela residência, criaram um sistema caseiro para canalizar água. No andar superior, foi instalado uma calha que recebe a chuva, leva para os canos ligados a uma caixa d'água de 500 litros e em seguida para torneiras onde foram instaladas as duas máquinas de lavar roupa. Com isso, conseguiram reduzir em 35% o consumo mensal em períodos chuvosos. "Meu marido pensou a solução, montou a armação e chamou um pedreiro para instalar a caixa. Desde então, reservo a água e economizo na conta", conta Cergina, microempreendedora individual.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o ser humano precisa de cerca de 110 litros de água por dia para atender todas as suas necessidades de consumo e higiene. Em 2015, a Organização alertou que as reservas hídricas mundiais podem encolher 40% até 2030. Com isso, surge a necessidade de uma mudança dramática na utilização do recurso.

César Pegoraro, biólogo e educador ambiental, conta que é possível diminuir o desperdício. Na sua casa, onde moram cinco pessoas - um casal e três crianças - o consumo diário é de 100 litros por pessoa, 10 a menos do que o estimado pela ONU, sem deixar de atender as necessidades básicas de cada um.

Entre as medidas adotadas na casa do biólogo, está um mictório instalado no banheiro social, que resulta em economia de água de até 75%. "Queremos atender nossas necessidades sem prejudicar futuras gerações. Penso nos meus filhos e quero inspirar outras pessoas a se preocuparem com o planeta", relata César.

Ameaça ao emprego

Unesco prevê que 40% dos recursos hídricos se esgotarão até 2030. Crise deve fechar postos de trabalho em todo o mundo, prevê organismo

Consequências das alterações no clima devem provocar redução de 2% do número de empregos até 2020

Mariana Pedroza - Especial para o Correio

Os últimos anos registraram acontecimentos climáticos mundiais que lembram filmes de ficção. As crises hídricas cada vez mais intensas passaram a assombrar populações inteiras ao redor do globo. Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos divulgado hoje deixa claro que a tendência é que esses cenários piorem se medidas de grande impacto não forem tomadas urgentemente.

Espera-se que as consequências das alterações no clima conduzam a um nível considerável de desemprego em toda a economia mundial, resultando em uma redução de 2% dos mais de 3,3 bilhões de postos de trabalho até 2020. Em se tratando de Brasil, o que preocupa é justamente o fato de o Produto Interno Bruto (PIB) nacional ser altamente ligado a setores que dependem de água com qualidade e em grandes quantidades, como agricultura. Nos mais de 3 bilhões de postos de trabalho no mundo 78% deles dependem muito ou moderadamente de água.

De acordo com o estudo, a previsão é de que, em 2030, as reservas de água possam diminuir até 40% caso governos e iniciativa privada não tomem decisões radicais de proteção de águas superficiais e em subsolo, recuperação de rios e lagos e reaproveitamento de recursos.

O especialista em meio ambiente Aldem Bourscheit ressalta que o Brasil deveria estar cada vez mais atento à manutenção da quantidade e da qualidade dos recursos hídricos. Aplicar e respeitar as legislações ambientais vigentes são um primeiro passo. "Nós temos lei para amparar os recursos naturais do país. A questão não é criar agora uma outra legislação. O mais importante é implementar o que já existe e, caso seja preciso, que se discutam os pontos que precisam ser alterados", explica Bourscheit.

Até 2050, existe a projeção de que cerca de 2,3 bilhões de pessoas estarão vivendo em áreas com grave restrição hídrica, especialmente no norte e no sul da África e na Ásia Central. Aqui no Brasil, estados como São Paulo revelaram nos últimos dois anos a fragilidade tanto do sistema de abastecimento como de manutenção dos recursos hídricos. "O sistema Cantareira perdeu sete em cada 10 hectares de vegetação nativa nos últimos 20 anos e isso teve grande parcela de culpa em toda essa crise. Respeitar a legislação e manter a vegetação nativa são condições mínimas para garantir a segurança hídrica", diz Bourscheit.

Todos esses efeitos de causa e consequência que envolvem principalmente crescimento populacional vertiginoso, disparada no desemprego e menos acesso à água potável devem caminhar para um caminho: aumento da pobreza e maior disparidade social. De acordo com o relatório da Unesco, a redução da disponibilidade de água intensificará ainda mais a disputa pelo recurso nos cenários da agricultura, pelos próprios ecossistemas, na indústria, na produção de energia e nos assentamentos humanos. Há, inclusive, a previsão de que a falta d'água afetará a segurança geopolítica, causando migrações em diversas escalas.

"Os hábitos precisam mudar"

Entrevista / Vicente Andreu
O país precisa se adaptar a uma nova realidade em relação à disponibilidade de água. Eventos climáticos extremos, que vieram para ficar, exigem aperfeiçoamento das leis e, principalmente, mudança nos padrões de consumo do brasileiro. A avaliação é do diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu. Em entrevista ao Correio, ele também fala sobre a "produção" de água, sobre a tragédia do Rio Doce e sobre a crise de abastecimento em São Paulo.

O país está preparado para enfrentar uma situação de escassez de água?
A avaliação tem que ser regional, dada a complexidade do País. Mas há aprendizados. O primeiro é a nossa fragilidade diante de eventos extremos. Segundo, a necessidade de mudança de padrões de consumo, que são muito elevados, seja nas cidades, seja na agricultura irrigada. Além disso, precisamos ter garantia energética. Também precisamos aperfeiçoar a legislação, para ter mecanismos que permitam reação mais rápida em situações de crise. Finalmente, os comitês de bacia precisam agir com mais agilidade.

Brasília está a salvo de crises de escassez?
Os problemas históricos de Brasília são a poluição no Lago Paranoá, bem como de mananciais que ofereçam segurança para o abastecimento, independentemente da quantidade de chuva. É uma situação mais confortável do que em outras regiões, mas, mesmo assim, deve ser analisada à luz da ocorrências de eventos climáticos extremos. Para evitar as consequências desses eventos, precisamos começar a trabalhar com resiliência e redundância, ou seja, é preciso ter oferta de água às vezes aparentemente muito superior à necessidade, justamente para que se possa, em períodos críticos, garantir o abastecimento.

É possível produzir água?
Sem dúvida, evitando o assoreamento dos rios, protegendo as margens e por meio da aplicação de políticas de conservação, o que tem recuperado milhares de nascentes. Em áreas degradadas que continham nascentes, elas voltaram a produzir água.

Então também é possível trazer de volta nascentes que estavam degradadas?
Perfeitamente. São constatações, para além de científicas, absolutamente concretas, comprovadas em diversos programas. Entre eles, o Produtor de Água, desenvolvido pela ANA, que é um programa de capacitação e de assistência técnica ao produtor rural no sentido da adaptação de propriedades a práticas sustentáveis.

Quanto tempo vai demorar para o Rio Doce voltar ao que era antes do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana?
Há diversas opiniões técnicas muito consistentes. Algumas com prazos menores, apostando na dinâmica natural do rio. Outras apontando que essas condições vão permanecer por muito tempo. Eu me filio mais a essa corrente, porque uma boa parte dos rejeitos sedimentou e essa sedimentação vai trazer alterações no rio. Além disso, há a necessidade de toda uma recuperação ambiental, da fauna, da ictiofauna, da capacidade de produção dos pescadores, das propriedades rurais, das margens. Os impactos não são observados apenas no leito do rio, mas também nos cursos que formam o Doce e foram muito danificados.

A água do Rio Doce está contaminada?
O Rio Doce tem características geológicas muito complexas. É uma área de mineração centenária. Já apresenta naturalmente indicadores decorrentes dessa atividade. Tem nível de sedimentos muito alto, decorrentes da mineração, da agricultura e de fatores geológicos. Isso tudo foi agravado pela natureza dos rejeitos depositados no rio pelo rompimento da barragem e pelo revolvimento do fundo do leitio. Durante a onda de lama, as condições eram de muitos indicadores alterados. Mas não houve captação de água para abastecimento nesse momento. A onda passou, os indicadores alterados voltaram às faixas naturais do rio e o problema principal passou a ser a turbidez. Os indicadores de qualidade da água no rio, de uma maneira geral, estavam alterados. Foi o maior desastre ambiental do Brasil e, talvez, do mundo. É importante frisar que há necessidade de recuperação de nascentes na bacia, monitoramento da qualidade da água, necessidade de melhoria substantiva do tratamento de esgoto na bacia e a construção de sistemas alternativos de abastecimento. A ANA fez aporte de 10 milhões de reais ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, que serão investidos na concepção de projetos.

O governador de São Paulo anunciou o fim da crise de água no estado. Como o senhor avalia?
Considero esse anúncio muito precipitado. Temos condição melhor do que em 2014 e em 2015, mas ainda estamos, para essa época do ano, na pior situação do histórico. É uma afirmação muito precipitada, que passa um sinal negativo para a população, no sentido de retorno às condições de consumo normais, que não existem.

O que as pessoas precisam mudar no consumo de água?
O consumo de água é predominantemente na agricultura. Mas evidentemente se pode, nas cidades, mudar padrões de uso. Os hábitos precisam mudar, mas, na minha opinião, isso precisa vir acompanhado da oferta de equipamentos para uso reduzido de água. É preciso substituir válvulas de descarga, fazer a medição individualizada dos apartamentos, o que propicia uma economia muito grande. Precisamos introduzir o mecanismo do reúso para uma série de atividades. Mas as empresas de saneamento, embora falem a respeito desse problema, contraditoriamente não têm tomado iniciativas efetivas no sentido de estimular o uso racional de água. Na agricultura, também há necessidade de uso de mecanismos eficientes para a irrigação, a substituição dos pivôs centrais, melhoria dos canais de irrigação.

Precisamos entender que há processo de alteração de padrões climáticos muito intensa. Alternância de secas e chuvas é alguma coisa absolutamente inédita, tudo acontecendo muito rapidamente. Esse é um tema que veio para ficar e temos que estar sempre muito preocupados em aumentar a segurança hídrica que garanta todos os usos.

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