Literatura

Autor ‘inventa’ biografia de artistas do período colonial em "Os primeiros"

Romance de Ricardo Prado parte de fatos históricos para ficcionalizar trajetórias de Nunes Garcia, Mestre Ataíde, Aleijadinho e Joaquina Lapinha, entre outros

Lucas Lanna Resende
postado em 08/11/2023 04:00
Pintura de Mestre Ataíde no teto da igreja São Francisco de Assis, em Ouro Preto; o artista é um dos personagens retratados no livro -  (crédito: Cristina Horta/EM/D.A Press. Brasil)
Pintura de Mestre Ataíde no teto da igreja São Francisco de Assis, em Ouro Preto; o artista é um dos personagens retratados no livro - (crédito: Cristina Horta/EM/D.A Press. Brasil)
int(20)

Para desespero de historiadores, quanto mais antiga é uma personalidade histórica, mais há lacunas em relação à sua biografia. Essas brechas, no entanto, são prato cheio para ficcionistas, que aproveitam para costurá-las com histórias e narrativas inventadas.

Foi o que fez o ex-maestro e escritor carioca Ricardo Prado no romance “Os primeiros”, lançado recentemente pela Editora da Ponte.

Partindo da biografia do mestre de capela e diretor da Capela Real José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), o livro apresenta a história de uma geração de artistas contemporâneos a ele, como Mestre Ataíde, Mestre Valentim, Aleijadinho, Joaquina Lapinha, Manuel Inácio da Silva Alvarenga, entre outros.

“Quando comecei o livro, pensava em escrever uma ficção histórica baseada na vida de José Maurício (Nunes Garcia)”, comenta o autor. “Mas, na medida em que escrevia, eu me dava conta de que o fenômeno não era só ele. Havia uma geração inteira de gênios das artes”, acrescenta.

Considerado o maior compositor de fora da Europa no século 18, Nunes Garcia viveu uma infância pobre na Rua da Vala (atual Rua Uruguaiana), no Centro do Rio de Janeiro. Sua mãe, Vitória, era doméstica e filha de escravizados. E o pai, Apolinário, era alfaiate, também filho de escravizados. Filho único, Nunes Garcia se dedicou aos estudos e à música. Tornou-se padre e manteve seus trabalhos com composições.

Em paralelo à sua vida, importantes acontecimentos históricos se desenrolaram, colocando muitos dos personagens da história brasileira em seu caminho.

Mestre Valentim, por exemplo, era amigo de um de seus companheiros mais próximos. Já o Mestre Ataíde, que pintou a Virgem Maria no teto da Igreja de São Francisco, em Ouro Preto, foi contemporâneo de Nunes Garcia como aluno de piano de Mestre Salvador José.


CANTORA

Joaquina Lapinha, por sua vez, a primeira cantora lírica brasileira a ter prestígio internacional, chegou a ensaiar com Nunes Garcia uma adaptação de “Il barbiere di Siviglia”, que Giovanni Paisiello compôs em 1782.

Lapinha, aliás, teve um affair com Manuel Inácio da Silva Alvarenga, conforme sugerem alguns pesquisadores. O poeta luso-brasileiro era amigo do vice-rei Dom de Almeida Portugal Soares, um dos primeiros a investigar o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.

Já o inconfidente era amante de Perpétua Mineira, uma dona de pensão que vivia a pouquíssimos metros da casa de Nunes Garcia e conhecia a família do padre-maestro.

Em outra vertente, personalidades da corte portuguesa também cruzaram o caminho de Nunes Garcia. Dom João VI se encantou com o “Te Deum” do maestro e o convidou para dirigir a Capela Real. Lá, Nunes Garcia conheceu e trabalhou com Marcos Portugal, que, posteriormente, seria professor de música de Dom Pedro I.

Tudo isso está documentado. Não seria, portanto, nenhuma novidade de “Os primeiros”. O que o romance de Ricardo faz, contudo, é aproveitar as zonas cinzentas que existem nesses episódios para ficcionalizar em cima disso.
Como Nunes Garcia reagiu à morte do pai? O que o motivou a compor o “Te Deum” e a famosa “Missa de Santa Cecília”? Como enfrentou o racismo para ser admitido no seminário? E como era o dia a dia na Corte Portuguesa? São esses hiatos que Ricardo aproveita para criar uma história inédita.

Ao citar os dramas de Vitória, Perpétua e Veridiana, irmã de Vitória e tia de Nunes Garcia, Ricardo mostra sensibilidade ao colocar na boca do narrador a reflexão: “Por que os pais davam nomes tão ambiciosos às filhas? Será por temer que elas sejam frágeis? Porque irão para um mundo que as despreza tão facilmente? Porque precisarão carregar em si uma palavra que lhes dê alguma coragem?”.

E, ao fazer a rainha Carlota Joaquina descrever seu avô, o Rei Carlos III de Espanha, escreve: “O meu avô tem uma cara muito engraçada.... Não há retrato, busto ou estátua em que não esteja a sorrir!”.

Com efeito, em todas as imagens que existem de Carlos III de Espanha, o monarca esboça um sorriso zombeteiro. “Na pesquisa que fiz para esse livro, não só li diversos livros e pesquisas a respeito dos personagens dessa época e da conjuntura política, como também me debrucei em várias imagens e pinturas”, conta Ricardo.

“Eu ficava olhando o quadro e escrevendo. Era como se, realmente, eu tivesse me transportado para o Rio de Janeiro daquela época”, diz.

PRÓXIMO ROMANCE

Depois de dois anos pesquisando e escrevendo - e mais cinco anos retornando à obra para eventuais modificações, enquanto não encontrava editora que aceitasse publicar o romance -, Ricardo Prado sentiu certa solidão, motivada pelas saudades dos personagens. Para resolver o problema, começou nova pesquisa para outro romance do gênero, que terá como protagonista Carlos Gomes. “E, quando acabar esse segundo livro, vou emendar outro com (Heitor) Villa-Lobos. Posso garantir que não vou sofrer com a solidão por um bom tempo”, brinca ele.


“OS PRIMEIROS”
• Ricardo Prado
• Editora da Ponte (848 págs.)
• R$ 149,90

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação