A área de proteção ambiental situada a 230 quilômetros de Brasília pode ser ampliada em quase quatro vezes. Ambientalistas e representantes da agricultura divergem sobre a eficácia do projeto
por Luiza Machado
Patrimônio Natural da Humanidade declarado pela Unesco, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO), a 230 quilômetros de Brasília, pode ter seu território ampliado em quase quatro vezes, passando de 65 mil hectares (650 quilômetros quadrados) para 230 mil hectares (2.300 quilômetros quadrados). A tentativa de ampliação, iniciada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio, ligado ao Ministério do Meio Ambiente) em parceria com ONGs, depende do chancelamento da Casa Civil e da posterior assinatura da presidência da República para entrar em vigor.
"Se parar para pensar, um parque nacional de 65 mil hectares é pequeno, tendo em vista que o nosso objetivo é conservar um ecossistema inteiro. Aqui, temos espécies que não são vistas em outros lugares do mundo. Além disso, temos grandes mamíferos, como onças e lobos-guará, que dependem de grandes áreas para caçar. Eles não têm voz, então nós somos a voz desses animais", ressalta Fernando Tatagiba, analista ambiental do ICMBio e chefe do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. No Plano de Manejo da área protegida, o instituto contabilizou a ocorrência de 118 espécies de mamíferos (9 delas exclusivas do Cerrado), 312 espécies de aves, 140 tipos de répteis e anfíbios, 49 espécies de peixes e cerca de mil insetos diferentes.
Nos últimos quatro anos, os defensores da ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros organizaram diversos estudos sócio-ambientais e consultorias para delinear um novo espaço à área ambiental. Três audiências públicas reuniram a sociedade, como determina o protocolo. Pequenos e grandes proprietários foram ouvidos, além de ambientalistas e agricultores. Após o processo, o ICMBio encaminhou a documentação para o Ministério do Meio Ambiente, que chancelou o projeto. A iniciativa aguarda a avaliação final do Palácio do Planalto.
"Houve um problema de desentendimento entre áreas jurídicas. A ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros inclui uma área de proteção estadual, a de Pouso Alto. A Casa Civil entendeu que uma área federal não pode se sobrepor a uma área estadual. O jurídico do Ministério do Meio Ambiente, no entanto, pensa diferente", explica Tatagiba. O impasse já dura um mês. O caso também é analisado pela Advocacia Geral da União. No entanto, o ICMBio vê grandes chances de a ampliação ser aprovada. Para evitar maiores conflitos, algumas dezenas de propriedades foram poupadas. Uma delas é o sítio do Bruno Mello, presidente da Fundação Mais Cerrado.
"Mesmo que meu sítio tivesse sido afetado pela ampliação do parque, eu não me importaria. A questão ambiental é muito importante para os habitantes da Chapada. Minha propriedade é sustentável, feita em bambu e resinas 100% vegetais, tem uma pequena estação de tratamento de esgoto. Vim morar aqui porque gosto da natureza e, portanto, jamais me oporia a ela", afirma Bruno. O ativista diz ainda que, quando se mudou para lá, há 23 anos, conseguia mergulhar em rios que cobriam todo o corpo dele. Hoje, os mesmos rios não chegam à altura dos joelhos. "Há alguns anos, os rios tinham o fluxo diminuído somente no fim da seca, em agosto. Hoje, eles já ficam secos em maio", preocupa-se.
De acordo com Tatagiba, essas alterações no ecossistema da Chapada dos Veadeiros acontecem por causa da grande ocupação da região, conhecida como o celeiro do Brasil. Principal exportador de soja do mundo, o país concentra a produção de grãos no Cerrado. "O zoneamento feito para o plano de manejo da Área de Proteção Ambiental de Pouso Alto mostra que o espaço destinado ao uso agropecuário intensivo, com grandes lavouras e alto nível de mecanização, se estende por mais de 119 mil hectares, ou seja, quase o dobro do tamanho atual do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros", detalha Tatagiba.
O vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (Faeg), Leonardo Ribeiro, ressalta que a instituição é totalmente contra o projeto de ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. O primeiro motivo, segundo ele, é a falta de regularização fundiária na região, o que poderia causar insegurança jurídica na hora de indenizar as famílias pelas terras perdidas. "Em segundo lugar, a experiência de aumentar um parque nacional sem a devida estrutura e locação de recursos gera um trauma muito grande para a população. É uma área gigante que ficará subaproveitada, criando um vazio demográfico enorme e gerando miséria. Além disso, são indenizações milionárias em época de crise econômica intensa. O governo vai conseguir pagar isso? Esse não é o momento certo de ampliar a área de proteção ambiental", opina Leonardo.
Segundo Tatagiba, a ampliação não vai atingir muitas propriedades: "80% das novas áreas não atingem casas e grandes terrenos de produção, são áreas de difícil acesso e imprescindíveis pra manutenção do nosso Cerrado". O vereador de Alto Paraíso Eduardo Estelita é um deles. Uma faixa do sítio dele, que fica próxima a um rio, vai fazer parte da nova área do parque. "Eu acho ótimo porque protege a nossa água. Não vejo essa perda de território como algo ruim, o direito individual não pode se sobrepor ao direito coletivo. E todos devem ter direito a um meio ambiente saudável. Eu não quero ser proprietário dessa faixa de terra, eu quero ser guardião dela", diz.
E ser guardião da flora, obviamente, implica proteger a fauna. Segundo Tatagiba, há registros fotográficos de animais raros na Chapada, como tamanduás-bandeira, onças pintadas, suçuaranas e o morcego beija-flor, um eficiente polinizador que dispersa sementes por todo o território. "O parque é um santuário da fauna. O registro desses animais nos mostra que o meio ambiente aqui ainda está razoavelmente equilibrado, mesmo com todos os reveses. A ampliação da área protegida é a garantia de manter esse ecossistema", destaca Tatagiba. "Não podemos nos esquecer que estamos em uma área com espécies endêmicas e algumas até ameaçadas de extinção, como o pato mergulhão. Recentemente descobrimos na Chapada uma rã da qual ninguém tinha conhecimento. Ou seja, se não cuidarmos do Cerrado, corremos o risco de perder algumas espécies sem nem conhecê-las", destaca o vice-presidente da Fundação Mais Cerrado, Marcos Saboya.
As monoculturas de soja, que invadiram a paisagem do Cerrado, são determinantes para a balança comercial brasileira, mas as plantações poderiam ser feitas de uma forma muito mais sustentável, pondera Tatagiba. "Estamos em 2016, já temos muitos modelos de tecnologia de produção que usam menos recursos naturais. Tem a produção orgânica, que vem ganhando espaço no mercado e que não usa agrotóxicos, que acabam poluindo nossos rios. Existem diversas formas de produzir sem agredir o meio ambiente, e os proprietários daqui precisam adotar modelos menos danosos", completa Bruno Mello, da Fundação Mais Cerrado.
Leonardo Ribeiro, da Faeg, reconhece que existem diversas formas de promover a agricultura sustentável, mas discorda que esses novos modelos não são usados. "Hoje, temos quase 100% de plantio direto na palha, evitando a retirada e a pulverização do solo. Estamos cumprindo o acordado em um dos pilares do ABC do Governo, que é a agricultura de baixo carbono. Temos um processo altamente sustentável, uma agricultura de precisão que permite mapear a propriedade e saber onde usar os agroquímicos e em que quantidade, evitando o uso excessivo. Temos integração entre lavoura, pecuária e floresta", garante.
A diversidade do Cerrado, de qualquer forma, parece resistir à produção de grãos. Apenas na área delimitada do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, é possível encontrar 1.636 espécies de plantas. A expectativa é que o número aumente, já que alguns tipos de campo, como a mata seca, passarão a fazer parte do parque, caso a ampliação seja sancionada. Para Marcos Saboya, o aumento da área protegida na Chapada dos Veadeiros é imprescindível, mas não a solução. "Poderíamos apresentar ao mundo um modelo de sustentabilidade. A Chapada é ideal para isso, para fazer um laboratório de sustentabilidade. O governo fala tanto em agroecologia. A ampliação da área por si só não resolve, mas o somatório da ampliação com práticas sustentáveis de plantio e extrativismo colocaria o Brasil em um outro patamar quando se fala em meio ambiente", opina.
De acordo com Saboya, o Cerrado sempre esteve renegado a segundo plano no quesito proteção ambiental. Não apenas por conta das monoculturas de soja e outros grãos, mas também porque as florestas têm prioridade. "O Cerrado sempre foi o patinho feio", critica. Mas o cenário começa a mudar por um simples e importantíssimo motivo: a água. Em média, 75% da vazão das principais bacias nacionais vêm do Cerrado, considerado o berço das águas brasileiras. Aqui, temos nascentes dos principais afluentes das bacias Amazônica, Araguaia-Tocantins e São Francisco.
"A crise hídrica que vivenciamos, principalmente em São Paulo, trouxe um importante alerta: é preciso preservar o Cerrado, nosso berço das águas. Então, hoje a questão desse bioma está mais em evidência, mas é triste pensar que a crise hídrica teve que acontecer para que as pessoas começassem a enxergar a importância do Cerrado para o país", observa Saboya. Ele vai além: "Se não cuidarmos desse patrimônio agora, corremos o risco de extinguir não apenas o Cerrado, mas a nossa civilização. A natureza não precisa de nós, mas nós precisamos da natureza", adverte.
O Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros surgiu em 1961 e tinha uma área de 625 mil hectares (quase dez vezes maior do que o tamanho atual). Na época, o então Parque Nacional de Tocantins foi perdendo espaço para a agricultura, a agropecuária e a própria ocupação populacional, por sua proximidade com Brasília, a nova capital. Em 1972, teve a área reduzida para 65 mil hectares e foi renomeado para Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.
Quase três décadas depois, em 2001, a área de proteção foi ampliada para 230 mil hectares, dando ao parque o título de Patrimônio Natural da Humanidade, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Dois anos depois, no entanto, advogados entraram com um mandado de segurança contra a ampliação, alegando que não haviam sido feitos os estudos necessários e as audiências públicas. O Supremo Tribunal Federal anulou o decreto presidencial que ampliava a área, e o parque teve o território novamente reduzido para 65 mil hectares.
Em 2016, há uma expectativa de que os problemas jurídicos serão superados. "Desta vez, os estudos foram minuciosos. As consultorias foram feitas com muita profundidade e ouvimos toda a sociedade que mora na Chapada dos Veadeiros. Tivemos três consultas públicas em setembro. Tudo foi feito de forma exemplar", explica Fernando Tatagiba. Ele ressalta ainda que apenas 3,5% dos territórios de Cerrado brasileiro estão protegidos de forma integral. Há outras unidades de conservação não integrais (que somam 8,21% de todo o Cerrado no país), mas permitem alguns tipos de cultura de grãos, por exemplo. "Dentro desses 8,21%, existem áreas não conservadas. E isso está bem longe da meta brasileira", alerta o chefe do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.
Signatário da Convenção da Diversidade Biológica em 1992, o Brasil assinou um documento com 20 metas. Uma delas é a proteção de forma integral de 17% do Cerrado. "O ideal é ampliar o parque e fazer um plano de manejo de áreas de proteção não integral, valorizando o plantio sustentável de grãos, promovendo a transição da agricultura para a agroecologia. Há inúmeros países proibindo a soja transgênica, por que não podemos investir em soja orgânica, por exemplo? O mercado está crescendo, e isso geraria lucro para os produtores. Todo mundo sairia ganhando: os produtores, a sociedade e a natureza", finaliza Tatagiba.
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