Entrevista

"O governo tem de parar de mudar meta", diz autora da LRF

Atualmente à frente da Secretaria da Economia de Goiás, Selene Peres Peres Nunes critica a mudança dos parâmetros para alcançar o equilíbrio das contas públicas e sentencia que a equipe econômica perdeu credibilidade no compromisso de controlar os gastos

Segundo ela, tanto o teto de gastos quanto o novo arcabouço acabam atrapalhando o cumprimento da lei, que vem sendo
Segundo ela, tanto o teto de gastos quanto o novo arcabouço acabam atrapalhando o cumprimento da lei, que vem sendo "solapada" - (crédito: Kayo Magalhães/CB/D.A Press)

Uma das autoras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que completou 24 anos ontem, a economista Selene Peres Peres Nunes vê com preocupação os sinais dados pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após a mudança das metas fiscais dos próximos anos no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2024.

Novamente, as autoridades resolvem alterar uma meta quando veem que ela não será cumprida, como aconteceu com o teto de gastos e, agora, com o novo arcabouço fiscal. "O governo tem que parar com essa história de tentar mudar a meta. Ele tem que cumprir a meta. A meta não é o problema", afirma Nunes, em entrevista ao Correio.

Em sua avaliação, o governo está minando a LRF, perdendo credibilidade e mudando as metas fiscais. Segundo ela, tanto o teto de gastos quanto o novo arcabouço acabam atrapalhando o cumprimento da lei, que vem sendo "solapada".

Atualmente à frente da Secretaria da Economia de Goiás e doutora pela Universidade de Brasília (UnB), Nunes não acredita no discurso da equipe econômica de que será possível estabilizar a trajetória da dívida em 2027 e não poupa críticas aos subterfúgios do presidente Lula em afirmar que investimento não é despesa. Confira os principais trechos da entrevista:

Como a senhora avalia esses 24 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal? Ela está sendo esquecida, após essa nova mudança de meta pelo governo no PLDO de 2025?

A LRF trabalhou com metas fiscais e cabia a cada ente da Federação estabelecer as suas respectivas metas. Eram as metas de receita, de despesa, de resultado primário, de resultado nominal e de dívida pública. Obviamente que, como as metas são estabelecidas para cada três exercícios, com o passar do tempo você vai editando novas Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDOs) e revisando os cenários, existe sempre um cenário de três anos à frente do comportamento da dívida pública. No PLDO de 2025 há uma trajetória de dívida que eles dizem que estabiliza depois de 10 anos. Só que é uma estabilização um pouco mágica, porque ela vem desestabilizada no período que você tem as projeções de receita, despesa e tudo mais e, aí, subitamente, a dívida começa a cair e estabiliza em 74% do PIB a partir de 2027.

E esse percentual é factível?

Não é factível. E, para não falar de outras despesas complicadas, vamos nos concentrar na Previdência Social. A Previdência tem um desajuste crescente ao longo do tempo. Esse é um ponto. Eu não vejo essa trajetória de equilíbrio fiscal sendo construída no governo federal. A meu ver, o desenho da regra, que é muito ruim, contribui para o desequilíbrio fiscal e para a falta de transparência. Essa mudança na LRF foi muito ruim. Hoje é considerado imprevisível e urgente quase tudo que simplesmente não foi planejado na época devida. Foram sendo criados puxadinhos para soltar a regra.

E qual seria a melhor solução?

Era preciso ter sido feito algo factível desde o início, permitindo que as despesas crescessem quando a receita crescesse também. Isso é da lógica da métrica, digamos assim, do equilíbrio fiscal. De fato, havia um problema com a regra do teto de gastos, porque ela era muito rigorosa e, ao mesmo tempo, cheia de exceções. Isso compromete a credibilidade de qualquer regra fiscal. Uma vez estive na Inglaterra numa missão e perguntei: qual é a melhor regra fiscal? E o inglês me disse: aquela que é cumprida. Então, o teto ficou complicado. Houve a mudança de governo e por um governo já escaldado pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, por conta da Lei de Responsabilidade Fiscal.

É, e pelas pedaladas…

O governo Dilma pedalou muito. Os consultores do Senado identificaram, pelo menos, 30 pedaladas diferentes. Eram desenhos diferentes para driblar as regras fiscais. Bom, você sabe que no processo de impeachment não precisava pegar tudo e foi feito uma restrição sobre aquilo que podia se abranger. Então, no processo, foi restringido e acabou ficando uma pedalada da operação de crédito e uma outra questão que foi a do descumprimento das metas fiscais.

E qual foi o problema da Dilma?

Ela não fez o contingenciamento necessário para que as metas fiscais fossem cumpridas e, inclusive, enviou pedidos de créditos ao Congresso Nacional sem que a meta tivesse sido alterada. Ela tinha mandado uma proposta de alteração da LDO, mas se antecipou e fez, correndo o risco de não cumprir a lei.

O arcabouço tem uma banda de tolerância para a meta fiscal de 0,25% do PIB para cima e para baixo…

Na prática, essa história de banda não existe, porque ninguém está preocupado com a banda superior. A questão é fazer menos resultado do que aquele necessário para atingir o equilíbrio. O governo vende para a população a ideia de que você vai trabalhar com resultado primário zero e que isso é equilíbrio fiscal. Então, vamos desconstruir alguns mitos. Primeiro, a meta não é zero. A meta é a banda inferior que é utilizada, qualquer que seja, de 0,25%, de 0,57% (do PIB). Dizer que a meta zero é equilíbrio fiscal, não é correto.

Na sua avaliação, a nova meta fiscal prevista na LDO não está clara? E nem mesmo os gatilhos?

Não está claro. O governo retirou a transparência do mecanismo de metas fiscais da LRF. É preciso ter consciência de que a meta em si não é aquilo que se comunica com os resultados. É sempre a banda inferior, porque é só a partir daí que se disparam medidas. É muito difícil o governo querer fazer contingenciamento e manter esse modo contínuo de geração de despesas. Aquela afirmação do presidente de que não é despesa, é investimento, isso é uma narrativa política, isso confunde o cidadão, confunde o leitor. Custeio ou investimento, tudo é despesa e vai ter que ser paga. Agora, é lógico que existem despesas de maior qualidade, de menor qualidade.

E essa é uma agenda que os governos deixam de lado e não atacam…

Sim. É preciso saber que tudo tem que ser pago, tudo é despesa. A ministra Simone Tebet (do Planejamento e Orçamento) está tentando retomar essa agenda que tentamos lá atrás, tentando buscar a qualidade do gasto público. O problema não é a regra, o problema é a disposição do governo em cumprir a regra que existe. E volto a dizer: o teto atrapalhou e o arcabouço fiscal está atrapalhando mais ainda.

Por quê?

Porque era rígido demais e cheio de exceções. E também porque é flexível demais e sequer dá a transparência de qual é a meta final que está sendo perseguida e o que ela significa. O governo federal tem, certamente, uma participação central nas contas públicas nacionais, pelo peso que detém. Não adianta botar a culpa em estados e municípios, porque a União é muito pesada. Então, se a União estiver desajustada, nada mais se ajusta. No caso dos estados, que estão no Regime de Recuperação Fiscal (RRF) - Rio do Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Goiás -, esses quatro têm que cumprir um teto de gastos, revogado pela União.

Mas isso não seria voltar ao que era antes do regime com esse arcabouço?

Eu não acho que o arcabouço fiscal seja uma regra ideal para se adotar em estados e municípios, não. Mas essa nova regra é muito ruim, porque é flexível demais e sem transparência alguma.

A Lei de Responsabilidade Fiscal pegou de alguma forma, apesar das alterações?

Pegou. Inclusive, houve uma redução dos desequilíbrios fiscais bastante expressiva num primeiro momento, nos primeiros anos. Houve alguns anos com superavits primários e isso provou que a regra para em pé. Mas, agora, é preciso ter esse comprometimento do governo. Nenhuma dieta é boa suficiente se você não tiver o comprometimento de cumpri-la. Há uma heterogeneidade muito grande, existem estados extremamente responsáveis, mas existe um problema muito grave em outros que precisa ser endereçado, como os do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud), que reivindicam mudança no indexador de correção da dívida com a União, que é extorsiva e cobra a Selic (quase 11% ao ano).

E qual é a proposta?

A nossa sugestão era adotar o centro da meta de inflação (de 3%) mais 1% para corrigir a dívida. Ninguém suporta uma dívida que cresce 11% ao ano. O desequilíbrio fiscal da União faz com que a taxa de juros seja necessariamente mais elevada. Você não pode querer transferir para os estados a conta da falta de coordenação entre políticas fiscal e monetária do governo federal. Não tem cabimento isso.

Essa proposta, levada por governadores ao presidente do Congresso, já foi conversada com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad?

Estamos tentando, por meio do Consórcio Brasil Central, uma agenda com Haddad para levar para ele a mesma proposta. Ele está com essa ideia dos juros por investimentos na educação, mas acho que temos que qualificar um pouco as coisas. Como é que um estado como o Rio de Janeiro, e isso explica um pouco a ida ao Supremo Tribunal Federal (STF), vai trocar os juros que ele não paga, que estão suspensos dentro do regime de recuperação fiscal, por mais despesas com educação? Eu estou trocando um recurso que não existe por mais despesas, compreende? Esse argumento usado para desonerar as dívidas dos estados tem vários problemas e temos que tratar os problemas do Brasil com maturidade.

Infelizmente, vemos sempre os mesmos problemas. Eles não mudam, né?

Não. Enquanto a gente fica patinando e discutindo se tem que cumprir metas, se não tem que cumprir meta, a gente deixa de fazer o que é preciso. O governo precisava estar mais concentrado na qualidade do gasto público, que é uma agenda que ficou parada. Muita coisa está sendo consumida com emendas. Essas são questões que precisam ser endereçadas, e que estão afetando significativamente a capacidade do governo federal de promover o ajuste fiscal.

Quer dizer que o problema não é a meta?

O problema é cumprir a meta. O governo tem que parar com essa história de tentar mudar a meta. Ele tem que cumprir. A meta não é o problema.

Na sua avaliação, o governo comprometeu a credibilidade ao mudar a meta fiscal na LDO de 2025?

Sim. O governo, certamente, perdeu a credibilidade. Toda vez que você muda uma meta é dado um passo em direção à perda de credibilidade das regras fiscais no Brasil, o que compromete aquele trabalho que a gente fez lá atrás. A regra da LRF continua em vigor, mas esse tipo de atuação vai solapando a regra.

A equipe econômica vive dizendo que o arcabouço está sendo elogiadíssimo. A senhora apontou vários defeitos. Quer dizer que ele tem muito mais problemas do que soluções?

A meu ver, sim.

E qual é o maior deles na sua avaliação?

O maior deles é a falta de transparência em relação à meta fiscal e seu conceito, tem se vendido a ideia de que a meta zero proporciona equilíbrio nas contas públicas. Não proporciona.

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postado em 05/05/2024 03:50
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